Político e experimental
17 de fevereiro de 2011Entre as diferentes seções do Festival Internacional de Cinema de Berlim (Berlinale), a Forum conta como a mais ousada, com espaço para produções de vanguarda, experimentos, ensaios, assim como para formas não classificáveis. Segundo a organização do evento, trata-se da oportunidade de "descobrir cinema perturbador, jamais visto e também 'difícil'".
Em 2011, o diretor da seção, Christoph Terhechte, identifica entre as 39 obras escolhidas uma ênfase nos temas família, relacionamentos e identidade. "A preocupação com a psique humana é o tema número um para os realizadores independentes de todo o mundo", afirma.
Ainda assim, esta 41ª edição permanece fiel à vocação original do Forum: o olhar político sobre o mundo. Duas produções, do Brasil e da Tailândia, ilustram duas possibilidades contrastantes dessa abordagem.
Os residentes
O longa de Tiago Mata Machado, produzido em 2010, se confronta com as vanguardas políticas e artísticas das décadas de 1960-70: um grupo de conhecidos de diversas idades se reúne numa casa prestes a ser demolida, onde instaura uma zona autônoma temporária.
Machado afirma partir de duas vertentes "bem contraditórias" sobre a história das vanguardas: "Uma que diz que toda vanguarda se repete como farsa em relação às vanguardas históricas. E outra que diz, pelo contrário, que todo gesto inicial de ruptura pode ser retomado, de alguma forma repotencializado, reatualizado".
Assim, o filme contém tanto "alguns gestos de autoironia" como "uma crítica, uma reatualização situacionista do que viria a ser o lugar do artista e da arte, hoje". Para o diretor mineiro nascido em 1973, uma coisa é certa: o artista tornou-se um "profissional da experimentação", e a arte "se confunde cada vez mais com o excedente do grande capital".
Os "órfãos da vanguarda" de Machado encenam happenings e performances; treinam a mímica da luta de guerrilha; perpetram um sequestro;"fumam maconha"; atravessam crises de relacionamento; discutem sobre Deus, o mundo e, acima de tudo, sobre si mesmos: ações repetidas, inúteis, como no mito de Sísifo. Por fim abandonam, para ser demolida, a casa onde se encontravam, levando consigo uma "utopia portátil", que é "a verdadeira".
Numa das cenas de Os residentes, o abrir e fechar das portas pichadas de um armário de vestiário resulta numa mensagem-móbile: "Estética estica ética". Mais tarde, o jogo de palavras concretista será explicitado com uma citação: "A estética é a ética do futuro".
O ensaio de Tiago Mata Machado peca, justamente, por ignorar essa premissa. Seu repertório de ideias e conceitos é amplo e intricado, suas referências culturais, inúmeras e respeitáveis, e seu objeto de estudo, em si, riquíssimo: grandioso material para uma tese. Porém todo esse conteúdo não se transmuta em textos ou imagens convincentes: parece imperar um descaso pelo cinema em si, pelos meios técnicos e expressivos; pela... estética.
As atuações baseadas em improvisação – pretensamente espontâneas, mas que na prática resultam quase sempre diletantes – em nada ajudam a comunicação emocional-sensorial das ideias de Machado. Assim o que, na teoria, prometia ser um meandro reflexivo entre homenagem e crítica, acaba reduzindo-se à farsa unidimensional e canhestra – desprovida quer de incisividade, quer de humor.
Boa parte do público da estreia retirou-se antes do fim – fato nada incomum nas sessões da Berlinale. Por outro lado, não faltaram aplausos, nem interessados para o bate-papo que se seguiu. Claro, é sempre possível virar a mesa, colocar-se como mártir incompreendido de uma nova arte e acusar de ignorância as vozes contrárias. Só que tal atitude tampouco é, necessariamente, garantia de bom cinema.
Os terroristas
Poo kor karn rai é o título original da coprodução teuto-tailandesa dirigida por Thunska Pansittivorakul (1973), apresentada na Berlinale sob o título internacional The terrorists.
Seu tema central são as revoltas prodemocráticas de abril de 2010, em Bangkok, Tachando os manifestantes de "terroristas", o governo militar reprimiu violentamente os protestos organizados pela Frente Nacional Unida da Democracia contra a Ditadura (UDD), provocando cerca de 2 mil mortes.
Trata-se de um filme nascido da revolta e da ira. Em texto falado e escrito, o relato de eventos – recentes e históricos – de repressão sangrenta na Tailândia alterna-se com palavras de ordem. Entretanto, via de regra, as imagens não coincidem com o conteúdo da narração.
De início, são longas tomadas de homens no trabalho noturno – pescadores, seringueiros. Mas súbito o filme salta para o aparente abuso sexual, pelo portador da câmera, de um jovem amarrado e de olhos vendados. A partir dessa cena de tortura encenada, iluminada por uma simples lanterna, a absurda superposição de conflitos político-sociais com homoerotismo se adensa. O clímax é a narração detalhada de um horrendo episódio de linchamento em 1976, enquanto, em imagens explícitas, um adolescente se masturba até o gozo.
Ninguém pode acusar Os terroristas de ser facilmente digerível. A relação entre o que é dito e o que se vê é quase sempre esquizofrênica, impedindo qualquer tipo de fruição despreocupada. Os massacres de 2010 que ele evoca, e que estão "envolvidos por um véu de esquecimento", são dignos de constar lado a lado com os piores exemplos de violência estatal na história recente – como os da Praça da Paz Celestial, em 1989.
O ensaio cinematográfico de Thunska Pansittivorakul tampouco deixa esquecer que, até recentemente, a Tailândia era um paraíso para os turistas sexuais ocidentais, sobretudo pedófilos.
Quem consegue suportar até o fim esse bombardeio de informações e imagens – também aqui, o índice de deserções foi elevado –, leva consigo um retrato engajado, possivelmente fiel, de um país violentado, traumatizado. Mas leva também inúmeras questões em aberto: sobre a injustiça, os limites do poder, sobre sexualidade, sobre o verdadeiro rosto da violência. Neste caso, uma indigestão que compensa.
Autor: Augusto Valente
Revisão: Roselaine Wandscheer