Pandemia agrava situação de refugiados na França
5 de maio de 2020O sol nascente ilumina algumas barracas num gramado na periferia da cidade portuária de Calais, no extremo norte da França. Ouve-se o canto de pássaros. De vez em quando, um carro passa – de resto, tudo é silêncio. Até que vários camburões da polícia francesa aparecem no local.
Os agentes com máscaras faciais – alguns com roupas de proteção – descem dos carros. Acordam os migrantes que dormem nas barracas e ordenam que liberem a área, avançando alguns metros mais adiante. Depois que a polícia vai embora, os refugiados voltam a montar seus abrigos improvisados no mesmo local.
Desde agosto de 2018, esse ritual se repete quase todos os dias, e nem mesmo a pandemia de covid-19 mudou a rotina das autoridades. A medida visa evitar que os refugiados passem a residir no local. Segundo organizações de auxílio em Calais, houve mais de 70 ações do tipo desde o início da proibição parcial da circulação da população, no fim de março.
"Os policiais não nos tratam como gente. Não nos respeitam", conta o eritreu Mengis, de 28 anos. "Se não levantamos quando eles chegam, confiscam nossas barracas. Daí, temos que esperar até uma semana para receber barracas novas das organizações de ajuda." Como muitos refugiados, Mengis supõe estar na mira da polícia e nenhum dos entrevistados quis ser fotografado pela reportagem da DW.
Muitos deles dizem até temer pela própria vida porque, desde a entrada em vigor das medidas restritivas, a polícia tem se mostrado bem mais agressiva em relação aos refugiados. Por isso, cinco eritreus redigiram uma carta aberta para denunciar uma brigada da tropa de choque.
Os conterrâneos de Mengis afirmam que os policiais os agrediram fisicamente por várias vezes, além de chamá-los de "macaco" e "vadia" e de atacá-los com gás lacrimogêneo. O órgão de fiscalização da polícia está investigando o caso.
Discriminação contra refugiados aumentou com a pandemia
Não é só a atitude da polícia que endureceu com a pandemia. Alguns migrantes relatam que funcionários de um supermercado próximo proíbem sua entrada no local. À DW, um porta-voz do estabelecimento escreveu que não há discriminação contra o grupo, mas se negou a dar uma entrevista.
O acesso ao centro da cidade também está sendo negado, dizem alguns refugiados, que alegam não conseguir pegar ônibus porque os veículos não param para que subam. A afirmação é refutada pelo secretário adjunto de Meio Ambiente e de Segurança da prefeitura de Calais, Philippe Mignonet, que administra a empresa pública de ônibus da cidade.
"Eles só não estão deixando entrar mais grupos de 30 ou 40 pessoas. Precisamos adotar essa medida depois que houve confirmação de três casos de covid-19 entre os refugiados e os nossos clientes não quiseram mais entrar nos ônibus", diz Mignonet, que afirma que os ônibus param, sim, para refugiados que não estão em grupo.
Não se sabe se os três casos de coronavírus são os únicos que ocorreram nos acampamentos. Funcionários de organizações humanitárias dizem que vários refugiados apresentam sintomas que apontam para a covid-19, mas nenhum deles foi testado. Manter um distanciamento físico entre os refugiados é impossível. E as condições higiênicas são ruins: entre as barracas, o lixo se acumula, não há máscaras faciais, álcool em gel e muito poucos banheiros.
O guineense Noël, de 20 anos, diz que se sente excluído. "Estamos completamente abandonados e desprotegidos", afirma. "Desde o início da pandemia, estamos presos aqui. Alguns de nós foram acolhidos em albergues, mas tinham que dividir um quarto entre quatro pessoas. Isso é ilegal. Muitos voltaram para cá, mesmo tendo que andar por dois dias", relata.
As organizações locais mandaram metade dos voluntários para casa, por causa das ordens de confinamento. Em duplas, os auxiliares que sobraram levam lenha e comida para os refugiados. Yann Manzi, cofundador da organização Utopia 56, afirma que a restrição de circulação significa um verdadeiro retrocesso em termos de direitos humanos.
"Fazemos o possível, mas não há mais respaldo legal para os refugiados", diz Manzi. "Eles continuam sendo expulsos de suas barracas e destratados pela polícia. Eu achei que, na crise, todos fossem se engajar uns pelos outros. Mas essas pessoas indefesas são simplesmente abandonadas", constata.
Evacuações "necessárias"
O vice-prefeito do distrito de Calais, Michel Tournaire, apresenta a situação de forma diferente. Segundo ele, equipes médicas examinam os migrantes regularmente, e as autoridades locais construíram banheiros. "Oferecemos albergues para migrantes com até 715 vagas", explica. "Nesses locais, médicos cuidam deles. Já houve 353 pessoas que aceitaram essa oferta", destaca.
Tournaire acrescenta ainda que as evacuações são necessárias também em tempos de covid-19. "Nem posso dizer nada a respeito, a Justiça [federal] decidiu assim".
As organizações humanitárias locais contestam a declaração sobre haver espaço suficiente nos albergues. Eles calculam que haja 1.200 refugiados em Calais, e não 600, como dizem as autoridades. Em Grande-Synthe, cidade satélite de Dunkerque, a cerca de 40 quilômetros a leste de Calais, há pelo menos mais 600 refugiados, diz Akim Toualbia, fundador e presidente da organização Solidarity Border. "Aqui há apenas seis vasos sanitários e não há nem sabão para lavar as mãos. Eu realmente achei que o Estado fosse nos apoiar mais nesses tempos difíceis", lamenta.
Muitos refugiados, porém, nem esperam mais ajuda do Estado francês. Diariamente, o eritreu Mengis quer continuar tentando chegar à Inglaterra. "Nunca vou desistir. Um dia vou conseguir. Meu sonho? Quero ser médico. Então, finalmente serei livre de verdade, terei uma casa e uma vida boa", diz, com olhos reluzentes.
Na Inglaterra, Mengis quer encontrar um dos dois irmãos que se estabeleceram no país. Mas em tempos de covid-19, parece mais difícil do que nunca chegar ao outro lado do Canal da Mancha.
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