Coronavírus e o triunfo do coletivo na Coreia do Sul
29 de outubro de 2020Caros brasileiros,
esta pandemia criou muitos paradoxos. De um lado, as empresas de big data, como Google, Facebook, Amazon, Apple e Zoom, aceleram e ganham com a onda da digitalização. Os seus clientes, com seus dados pessoais, alimentam todo dia voluntariamente a fome insaciável por dados dessas empresas.
Se, por um lado, esses dados valem ouro para o marketing personalizado, eles parecem não valer nada para combater o coronavírus. Pelo menos não nos Estados Unidos, no Brasil, e na Alemanha. Aqui, em vez de usar a inteligência artificial e o rastreamento digital, o governo optou por medidas drásticas de distanciamento social e anunciou um segundo lockdown.
Já na Coreia do Sul, este conceito é bem diferente. A saúde vale mais que a proteção de dados e direitos individuais. No país asiático, a perseguição ao vírus é digital. O governo não decreta lockdown, mas obriga a população a ser controlada por meio de seus smartphones.
A busca epidemiológica via GPS, inteligência artificial, reconhecimento facial e sincronização de dados, inclusive de cartões de crédito, alcançou um nível com o qual o escritor George Orwell, autor do romance profético 1984, nem sequer sonhava.
A estratégia de test, trace and track (testar, rastrear e acompanhar) parece dar certo. Segundo levantamento da Universidade John Hopkins, desde o início da pandemia, o país com 52 milhões de habitantes registrou pouco mais de 26 mil infeções. Na Alemanha, só nos últimos sete dias, foram mais de 82 mil casos.
Aí, aparece a pergunta: como explicar o fato de que se fala tão pouco sobre um país com tanto sucesso no combate à pandemia? Como explicar o fato de um país que tem uma das menores recessões previstas para este ano (uma queda do PIB de entre 0,8% e 2%, segundo a OCDE) não inspirar países como Alemanha (recessão prognosticada em torno de 6%), Brasil, Índia ou Estados Unidos?
A meu ver, a reposta tem origem em uma certa arrogância do mundo ocidental. É a convicção de que o modelo de uma sociedade aberta e livre, com direitos individuais garantidos e liberdades politicas arduamente conquistadas, é o melhor modelo para se viver. E que o indivíduo não é restringido pela supremacia do coletivo.
Realmente concordo que a Europa e a Alemanha em especial oferecem um dos melhores lugares para se viver atualmente, e sou grata por poder usufruir destas condições de vida. Mas isso não quer dizer que em outros países não existam bons exemplos a seguir, independentemente do modelo político, da religião ou das razões ideológicas.
Ainda me lembro do debate bem no início da pandemia sobre o uso de máscaras. Enquanto na Coreia do Sul todo mundo já usava a proteção e, com isso, conseguia controlar a pandemia, na Alemanha ainda se discutia se máscaras realmente serviriam para se proteger.
Depois veio o debate sobre os testes. Enquanto a Coreia do Sul já tinha introduzido o modelo drive-thru de testes grátis e obrigatórios, na Alemanha, ainda faltavam kits para testagem e vontade política. Argumentava-se que era muito caro, que os resultados dos testes não seriam 100% seguros e que era melhor ficar em casa em quarentena.
Paralelamente, desenrolou-se uma discussão jurídica e politica sobre a proteção de dados. A desconfiança era e é grande. Teme-se que a privacidade, uma vez invadida e restringida em nome do combate à pandemia, seja muito difícil de ser restabelecida em tempos normais. Consequentemente, o desenvolvimento de um app para rastrear a covid-19 demorou, e seu uso voluntário, e não obrigatório, reduz sua eficácia.
O resultado é que a Coreia do Sul continua sem lockdown e com lojas e restaurantes abertos, enquanto na Alemanha e em muitos outros países da Europa o lockdown voltou. E o Brasil, com mais de 5 milhões de infectados e quase 160 mil mortos, está sob um presidente que considera o coronavírus uma "gripezinha".
É bizarro: enquanto o número de infeções sobe exponencialmente na Alemanha, nos demos ao luxo de discutir medidas que em países como a Coreia do Sul já deram resultados. Não dá para negar: essa atitude é um ato de arrogância. A pandemia não tolera isso. Ela transformou o mundo em um laboratório global de combate à covid-19. Quem fica de fora e prefere criticar do que colaborar vira alvo de ataque.
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Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário taz de Berlim e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter @aposylt e no astridprange.de.