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EducaçãoBrasil

Bancas de heteroidentificação precisam de revisão

Vinícius de Andrade
Vinícius De Andrade
11 de abril de 2024

Mesmo sendo preto, Alison, jovem paulista aprovado em medicina pela USP, foi barrado por comissão de avaliação. Caso ilustra subjetividade e fragilidade deste modelo.

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Vista interna do Prédio da FFLCH-Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas
"Falhas podem ocorrer, mas casos como o do Alison simplesmente não podem voltar a se repetir"Foto: Nadia Pontes/DW

Alison, jovem paulista, recebeu com felicidade a notícia: foi aprovado em medicina na Universidade de São Paulo (USP). Posso apenas imaginar a alegria que ele e sua família sentiram. Ele, pobre, preto e oriundo da rede pública, estava diante de uma conquista que é o sonho de milhares de jovens de todo o país. Inclusive, muitos passam anos tentando e desistem.

Graças ao provão paulista, Alison foi aprovado direto do ensino médio público no curso mais elitista e concorrido do país. A alegria, entretanto, não durou muito.

Ele foi aprovado nas vagas reservadas para cotas raciais e precisava ainda passar pela banca de heteroidentificação. Para quem não sabe, essa é a comissão que "avalia" se o candidato é realmente preto. O objetivo é impedir que alguém burle o sistema e se declare preto quando não é, e, consequentemente, garantir com que o direito seja apenas usufruído por quem legalmente o merece.

Logo após a avaliação, a grande alegria do Alison e de sua família foi tomada por muita tristeza e frustração: ele foi barrado pela banca, ou seja, a comissão avaliou que ele não seria preto e, portanto, não poderia se matricular e ser oficialmente um estudante da USP.

O caso tomou grandes proporções e a Justiça foi envolvida. À Justiça, a universidade alegou que o jovem leu sua autodeclaração para a banca, "que concluiu que o candidato tem pele clara, boca e lábios afilados, cabelos raspados impedindo a identificação, não apresentando o conjunto de características fenotípicas de pessoa negra".

Antes de prosseguir com o texto, quero fazer um importante apontamento sobre a USP. Sou egresso da instituição, oriundo de um bairro da periferia e acredito que tenho lugar de fala. A instituição tem sim uma história de elitismo na composição de seu corpo discente, que, por muito tempo, foi composto majoritariamente por jovens oriundos da rede privada. Mas precisamos ser justos: ela vem colocando energia em aumentar seus mecanismos de inclusão.

Além disso, digo com muita segurança e conhecimento de causa: há professores, pesquisadores e funcionários da universidade altamente capacitados e comprometidos com a democratização do acesso ao ensino superior e com a pluralidade do corpo discente da instituição.

No entanto, é fato: houve sim uma falha com o Alison. A banca de heteroidentificação da USP, normalmente, é presencial. Mas no caso dele, como a aprovação foi via provão paulista, a apresentação foi online e isso é inadmissível. Uma avaliação de tamanha importância e que visa avaliar aspectos fenotípicos do candidato não pode ocorrer em outro formato além do presencial. Questões como iluminação, qualidade da conexão, luz natural, posição da câmera e afins são variáveis que podem enviesar a percepção sobre das características de alguém.

Padronização e diretrizes nacionais

A política de comprovação da autodeclaração, por meio da banca, é válida e necessária. Infelizmente, não podemos apenas confiar na autodeclaração do candidato, sobretudo quando a vaga no ensino superior, e o consequente diploma, está em jogo.

Mas essas bancas precisam ser muito bem estruturadas e vou além: é necessário haver algum tipo de regulamentação, padrão nacional e diretrizes mais claras. No contexto atual, cada instituição pode estruturar sua própria banca e isso, em minha visão, não é positivo.

Não é um problema apenas da USP e ocorre em todo o país. Faço parte de vários grupos de vestibulandos nas redes sociais e vira e mexe aparece alguém relatando a preocupação antes de se apresentar para a banca e enviando fotos perguntando como o público o avalia em relação à cor.

É uma ansiedade que nasce justamente da falta de clareza nas bancas. Há margem para subjetividade e foi o que ocorreu com o Alison. Se você, leitor, estiver curioso, faça o seguinte teste: procure o caso no Google e verá fotos do jovem. Ele claramente é preto. Não há dúvidas.

Penso que, qualquer política que esteja "punindo" o grupo errado ou não filtrando quem deveria filtrar, precisa urgentemente de uma revisão e de uma reestruturação. Entendo que falhas podem ocorrer, mas casos como o do Alison simplesmente não podem voltar a se repetir com mais ninguém. Não pode.

As políticas de inclusão e de cota racial foram criadas como instrumentos de reparação, para garantir o acesso à universidade para jovens como Alison. Nesse contexto, a banca não deveria em nenhuma hipótese ser um momento de medo, ansiedade ou frustração para aqueles que ela deveria proteger.

Todos os instrumentos e mecanismos que foram criados para ajudar jovens como ele e para garantir seus direitos se voltaram contra ele e tornaram um dos momentos mais felizes de sua vida, rapidamente, também em um dos mais decepcionantes e tristes. Sinto muito por ele, mas não é possível voltar no tempo. Espero, sinceramente, que seu caso seja um gatilho para que todas as bancas de heteroidentificação do país sejam reestruturadas e também para sejam desenvolvidas diretrizes nacionais para essa avaliação.

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Vozes da Educação é uma coluna semanal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do Salvaguarda no Instagram em @salvaguarda1

Este texto foi escrito por Vinícius De Andrade e reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

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A coluna quinzenal é escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade.