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EducaçãoBrasil

O que esconde o mito do colaborador

Vinícius de Andrade
Vinícius De Andrade
28 de novembro de 2024

Cada vez mais jovens almejam uma vida profissional sem ter patrão. Esse sentimento carrega grande frustração com o mercado formal e é explorado por empresas, que muitas vezes os colocam numa situação ainda pior.

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Logotipo do aplicativo Uber
"Empresas se pautam na ideia da liberdade, mas conseguem ser ainda piores ao falhar miseravelmente no oferecimento de benefícios e direitos básicos ao trabalhador."Foto: Josh Edelson/AFP

"Tenho patrão não. Sou meu próprio chefe e tenho minha liberdade": Seja em viagens de Uber ou em conversas com desconhecidos, já perdi a conta da quantidade de pessoas que repudiam a ideia de ter um patrão. Cada vez mais jovens, claro, compartilham o mesmo sentimento.

Achava que era um movimento inédito, mas numa das discussões em sala de aula uma professora, especialista em mercado de trabalho, frisou que não é bem assim. O sentimento em si não é novo, porém hoje ele assumiu outros formatos, sobretudo com o advento das plataformas de entrega e corridas e com a estratosférica expansão das redes sociais.

Entendo o sentimento. Ele é válido e merece respeito e atenção, mas confesso que me preocupo com as possíveis consequências para os indivíduos. Infelizmente, o conto da liberdade pode acabar em uma relação ainda mais exploratória do que a que repudiavam e isso é cruel.

Dificuldades no mercado de trabalho formal

Atualmente, ingressar no mercado de trabalho para um jovem que está procurando o primeiro emprego é um desafio gigantesco. De um lado, é preciso ter experiência, mas como tê-la se você nunca trabalhou antes? De outro, é requerido um nível de qualificação que muitos não tiveram a oportunidade de adquirir, sobretudo os jovens que são de baixa renda.

Dado tamanha dificuldade, é de se pensar que estamos falando de vagas incríveis, com altas remunerações e incontáveis direitos e benefícios, mas não. É assustador tantos critérios e pré-requisitos para vagas que pagam um salário-mínimo ou pouco mais.

Quando conseguem o emprego, outros desafios surgem e o que encontram são relações muitas vezes pautadas em desrespeito, exploração e acúmulo de funções. Uma grande amiga, no primeiro emprego como recepcionista, passou por isso, e até pão de mel para o aniversário da filha da patroa precisou fazer. Ia ao mercado, na padaria e fazia atividades que não eram da sua função. Para a patroa, minha amiga deveria ser grata pela oportunidade de ter um trabalho e, portanto, fazer tudo o que era solicitado.

O papel das redes sociais

Dentro do contexto exposto acima, não é de se impressionar que esses jovens sonhem com uma vida melhor, com um emprego melhor remunerado e com uma relação em que não sejam explorados, humilhados ou assediados.

Esses indivíduos em suas horas de descanso, claro, navegam nas redes sociais. O que encontram? De um lado, influencers que esbanjam vidas glamourosas, que viajam para onde querem, comem o que desejam e vivem em casas luxuosas. De outro, perfis vendendo ideias de maneiras fáceis de ganhar dinheiro, como pirâmides, vendas de cursos, marketing place e todos os afins.

Independente do lado, todos ficarão ainda mais tentados, mais desmotivados com o mercado formal de trabalho e mais sedentos por uma oportunidade de mudar de vida.

O mito do colaborador

Se aproveitando desse grande sentimento de frustração, alinhado com a sede de vencer e se dar bem, nascem empresas que vendem o mito do colaborador e falam as seguintes palavras mágicas: "Você não vai mais ter patrão". Inteligentíssimo e estratégico, mas cruel.

Uma vez peguei um Uber e ele me contou que trabalhava numa agência de seguros e não tinha patrão. Ele falava com muita felicidade e orgulho, estava até de roupa social, dizia estar "voando" na vida e que era o próprio chefe. Infelizmente, não era verdade, mas ele comprou a ideia e estava, ainda que não percebesse, sendo o funcionário de um patrão.

Como fruto da mesma lógica, nasceram as plataformas de corrida e de entrega, como Uber, Ifood, Rappi e todos os outros. Eles vendem a ideia de não ter mais patrão e da possibilidade de escolher quanto ganhar. Eles se pautam na ideia da liberdade, mas só mudam de formato em relação ao modelo tradicional e conseguem ser ainda piores ao falhar miseravelmente no oferecimento de benefícios e direitos básicos ao trabalhador.

O que fazer?

Não acho que não querer ter patrão seja um problema. Não acho que querer empreender seja um problema, e não acho que o simples fato de almejar tentar a sorte nas redes sociais seja um problema.

O problema é a situação de risco e vulnerabilidade que todos esses anseios e desejos podem trazer. Não faz muito sentido fugir de uma relação exploratória para entrar em outra cuja única mudança é uma exploração maquiada e moderna. Isso também é perigoso para o futuro, pois boa parte dessa galera não está contribuindo com a previdência e, portanto, são fortes candidatos a não ter aposentadoria. Olhem o tamanho do problema. Quem irá ajudá-los? O que será feito? Estamos diante de um futuro cenário caótico que não pode ser ignorado ou subestimado.

Atacar esses sentimentos não é a solução. Não podemos de forma simplória chamar esses jovens de preguiçosos ou dizer que querem tudo fácil. Poxa, não dá mesmo para compreender o sentimento de querer mais do que sobreviver? De não querer ser explorado? De almejar comer em um bom restaurante ou de realizar o sonho de conhecer outro país?

Em minha visão, a política requerida deve se pautar em três pilares. Primeiramente, é necessário mudanças no mercado formal de trabalho, com políticas de inserção para os jovens que atenuem a falta de experiência, além de políticas de valorização e de vagas com remunerações compatíveis com os pré-requisitos. Sei que não é fácil, mas não podemos esperar que as pessoas almejem um mercado que simplesmente não é atrativo.

Alinhado a isso, precisamos munir os jovens de instruções e informações para que, pelo menos, não caiam em ciladas e relações ainda mais exploratórias. Por último, mas não menos importante, é necessário tentar ao máximo cobrir essa galera, direta ou indiretamente, no sentido de previdência.

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Vozes da Educação é uma coluna semanal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do programa no Instagram em @salvaguarda1.

Este texto foi escrito por Vinícius De Andrade e reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

 

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A coluna quinzenal é escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade.