"Tenho patrão não. Sou meu próprio chefe e tenho minha liberdade": Seja em viagens de Uber ou em conversas com desconhecidos, já perdi a conta da quantidade de pessoas que repudiam a ideia de ter um patrão. Cada vez mais jovens, claro, compartilham o mesmo sentimento.
Achava que era um movimento inédito, mas numa das discussões em sala de aula uma professora, especialista em mercado de trabalho, frisou que não é bem assim. O sentimento em si não é novo, porém hoje ele assumiu outros formatos, sobretudo com o advento das plataformas de entrega e corridas e com a estratosférica expansão das redes sociais.
Entendo o sentimento. Ele é válido e merece respeito e atenção, mas confesso que me preocupo com as possíveis consequências para os indivíduos. Infelizmente, o conto da liberdade pode acabar em uma relação ainda mais exploratória do que a que repudiavam e isso é cruel.
Dificuldades no mercado de trabalho formal
Atualmente, ingressar no mercado de trabalho para um jovem que está procurando o primeiro emprego é um desafio gigantesco. De um lado, é preciso ter experiência, mas como tê-la se você nunca trabalhou antes? De outro, é requerido um nível de qualificação que muitos não tiveram a oportunidade de adquirir, sobretudo os jovens que são de baixa renda.
Dado tamanha dificuldade, é de se pensar que estamos falando de vagas incríveis, com altas remunerações e incontáveis direitos e benefícios, mas não. É assustador tantos critérios e pré-requisitos para vagas que pagam um salário-mínimo ou pouco mais.
Quando conseguem o emprego, outros desafios surgem e o que encontram são relações muitas vezes pautadas em desrespeito, exploração e acúmulo de funções. Uma grande amiga, no primeiro emprego como recepcionista, passou por isso, e até pão de mel para o aniversário da filha da patroa precisou fazer. Ia ao mercado, na padaria e fazia atividades que não eram da sua função. Para a patroa, minha amiga deveria ser grata pela oportunidade de ter um trabalho e, portanto, fazer tudo o que era solicitado.
O papel das redes sociais
Dentro do contexto exposto acima, não é de se impressionar que esses jovens sonhem com uma vida melhor, com um emprego melhor remunerado e com uma relação em que não sejam explorados, humilhados ou assediados.
Esses indivíduos em suas horas de descanso, claro, navegam nas redes sociais. O que encontram? De um lado, influencers que esbanjam vidas glamourosas, que viajam para onde querem, comem o que desejam e vivem em casas luxuosas. De outro, perfis vendendo ideias de maneiras fáceis de ganhar dinheiro, como pirâmides, vendas de cursos, marketing place e todos os afins.
Independente do lado, todos ficarão ainda mais tentados, mais desmotivados com o mercado formal de trabalho e mais sedentos por uma oportunidade de mudar de vida.
O mito do colaborador
Se aproveitando desse grande sentimento de frustração, alinhado com a sede de vencer e se dar bem, nascem empresas que vendem o mito do colaborador e falam as seguintes palavras mágicas: "Você não vai mais ter patrão". Inteligentíssimo e estratégico, mas cruel.
Uma vez peguei um Uber e ele me contou que trabalhava numa agência de seguros e não tinha patrão. Ele falava com muita felicidade e orgulho, estava até de roupa social, dizia estar "voando" na vida e que era o próprio chefe. Infelizmente, não era verdade, mas ele comprou a ideia e estava, ainda que não percebesse, sendo o funcionário de um patrão.
Como fruto da mesma lógica, nasceram as plataformas de corrida e de entrega, como Uber, Ifood, Rappi e todos os outros. Eles vendem a ideia de não ter mais patrão e da possibilidade de escolher quanto ganhar. Eles se pautam na ideia da liberdade, mas só mudam de formato em relação ao modelo tradicional e conseguem ser ainda piores ao falhar miseravelmente no oferecimento de benefícios e direitos básicos ao trabalhador.
O que fazer?
Não acho que não querer ter patrão seja um problema. Não acho que querer empreender seja um problema, e não acho que o simples fato de almejar tentar a sorte nas redes sociais seja um problema.
O problema é a situação de risco e vulnerabilidade que todos esses anseios e desejos podem trazer. Não faz muito sentido fugir de uma relação exploratória para entrar em outra cuja única mudança é uma exploração maquiada e moderna. Isso também é perigoso para o futuro, pois boa parte dessa galera não está contribuindo com a previdência e, portanto, são fortes candidatos a não ter aposentadoria. Olhem o tamanho do problema. Quem irá ajudá-los? O que será feito? Estamos diante de um futuro cenário caótico que não pode ser ignorado ou subestimado.
Atacar esses sentimentos não é a solução. Não podemos de forma simplória chamar esses jovens de preguiçosos ou dizer que querem tudo fácil. Poxa, não dá mesmo para compreender o sentimento de querer mais do que sobreviver? De não querer ser explorado? De almejar comer em um bom restaurante ou de realizar o sonho de conhecer outro país?
Em minha visão, a política requerida deve se pautar em três pilares. Primeiramente, é necessário mudanças no mercado formal de trabalho, com políticas de inserção para os jovens que atenuem a falta de experiência, além de políticas de valorização e de vagas com remunerações compatíveis com os pré-requisitos. Sei que não é fácil, mas não podemos esperar que as pessoas almejem um mercado que simplesmente não é atrativo.
Alinhado a isso, precisamos munir os jovens de instruções e informações para que, pelo menos, não caiam em ciladas e relações ainda mais exploratórias. Por último, mas não menos importante, é necessário tentar ao máximo cobrir essa galera, direta ou indiretamente, no sentido de previdência.
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Vozes da Educação é uma coluna semanal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do programa no Instagram em @salvaguarda1.
Este texto foi escrito por Vinícius De Andrade e reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.