As longas noites de Kreuzberg
24 de junho de 2006Kreuzberg carregou por muito tempo o estigma de bairro boêmio da capital, ao menos enquanto o Muro de Berlim existiu. Como dizia um verdadeiro clássico local: "Kreuzberger Nächte sind lang" (As noites de Kreuzberg são longas).
Em todo o país, o bairro permaneceu um mito, sinônimo de punks e ativistas de esquerda, de imigrantes turcos e violentos protestos anuais de 1º de Maio. No entanto, desde a reunificação alemã, ele vem sofrendo, como muitos bairros de Berlim, uma verdadeira metamorfose.
Revalorizado devido à sua posição central, Kreuzberg reúne hoje tanto famílias turcas que nos fins de semana se reúnem para fazer churrasco no Görlitzer Park, como punks que rondam por suas ruas pitorescas e – por que não? – profissionais liberais bem-sucedidos que transformam andares inteiros de antigas fábricas em apartamentos de luxo.
No morro da cruz
O bairro ganhou seu nome na segunda década do século passado. Ao contrário de muitos bairros de Berlim, Kreuzberg não era uma vila já formada que acabou sendo deglutida pela cidade em plena expansão, mas foi praticamente fundada na década de 20, quando foram estipuladas novas fronteiras para a cidade.
Literalmente, o nome morro da cruz deve-se a um fato histórico: em 1821, foi erguido no topo de uma das raras elevações geográficas naturais da cidade um monumento nacional concebido por Friedrich Schinkel em virtude da libertação das forças de ocupação da França de Napoleão entre 1813 e 1815.
O monumento se encontra na porção sul de Kreuzberg, no charmoso Viktoria Park, que na época era reservado ao cultivo de vinhedos e hoje é um dos locais prediletos de descanso na região. Logo, o nome se estendeu às proximidades. Atrás do morro, encontram-se os galpões desativados da antiga cervejaria Schultheiss, hoje transformada em condomínio residencial de luxo.
À direita de quem desce o morro, atravessando a larga avenida Mehringdamm, fica a rua Bergmannstrasse, ao redor da qual concentram-se cafés, restaurantes, lojas de discos, de moda e de arte.
A impecável manutenção dos edifícios históricos transformou esse pedaço em cenário freqüente de produções de cinema interessados em reproduzir a atmosfera do pré-guerra.
Também o Carnaval das Culturas, que atrai a cada ano milhares de interessados à Kreuzberg, passa pela região.
Mais ao sul, fica o megalômano aeroporto Tempelhof, um dos maiores exemplos da estética nazista e até hoje o terceiro maior complexo arquitetônico do mundo, com 1,3 quilômetro de extensão. Na época o mais moderno aeroporto da Europa, o edifício só foi finalizado após a guerra pelos norte-americanos.
Longas, longas noites…
A porção leste de Kreuzberg – ainda hoje conhecida por Kreuzberg 36 devido ao antigo código postal da cidade (SO 36) – permaneceu durante as décadas de 70 e 80 como um enclave na velha Berlim Ocidental. Cercada de dois lados pelo Muro e de outro pelo canal, a região praticamente se isolou do resto da cidade.
A preservação de suas velhas casas, em grande parte destruídas durante a guerra e pouco atraentes para investimentos devido à localização arriscada, tornou-se objetivo maior de uma geração de punks de esquerda e squatters, ocupadores urbanos ilegais cuja meta era evitar que fossem levados a cabo os planos urbanísticos de então, que previam a demolição dos edifícios históricos e a construção de prédios altos.
O Zentrum Kreuzberg, erguido entre 1969 e 1974 na praça Kottbusser Tor, é um exemplo do enorme risco que o bairro correra – uma espécie de cortiço com 295 apartamentos e 70 lojas espalhados por 12 mil metros quadrados.
O desgosto dos berlinenses com a construção é tamanho, que políticos consideraram sua demolição nos anos 90, embora sua localização central e os baixos aluguéis o tornem um dos imóveis preferidos da população menos abastada.
Mas não só squatters salvaram a alma de Kreuzberg. Na época, os aluguéis baratos atraíram também uma enorme população de imigrantes, em sua maioria turcos, que trouxeram consigo uma nova cultura e emprestaram ao bairro um flair único na cidade e que até hoje é um de seus principais destaques.
A área estendida entre as praças Kottbusser Tor e Schlesisches Tor é o coração da Berlim turca. E também o fim da velha Berlim Ocidental, separada pelo Rio Spree e pela ponte Oberbaumbrücke do bairro de Friedrichshain. Desde 2001, os dois distritos constituem apenas uma administração regional e todo ano os habitantes de cada lado se encontram aí para uma já quase tradicional guerra de legumes.
Passeios históricos
Mas Kreuzberg ainda esconde muita história. É lá que fica o Checkpoint Charlie, na rua Kochstrasse, onde cidadãos estrangeiros atravessavam a fronteira para Berlim Oriental. Lá existe uma réplica do entreposto bem em frente ao Museu do Muro, de iniciativa privada.
Pouco mais ao norte, encontra-se um dos melhores pontos para ver restos do Muro. A linha divisória cortava ao meio a rua Niederkirchnerstrasse, separando de um lado o Martin Gropius Bau, um renomado salão de exposições, e de outro a atual Assembléia Legislativa de Berlim.
Bem ao lado, ficava a antiga central da polícia nazista, a Gestapo, cujo prédio foi inteiramente destruído, mas em cujos subterrâneos foi montada a mostra Topografia do Terror, que reconta a ascensão e a queda do nazismo.
Também em Kreuzberg fica o Museu Judaico, inaugurado em 2001 a partir de um projeto desenvolvido pelo renomado arquiteto Daniel Libeskind.