A dignidade no rosto da pobreza
15 de novembro de 2003Mais de 40 milhões de pessoas no mundo fugiram de sua terra por causa de guerras civis, perseguição de cunho político, religioso ou étnico. Cerca de 20 milhões buscaram refúgio em países vizinhos ou longínquos, enquanto os demais são deslocados dentro do próprio país. A metade desse contingente é de crianças e jovens até 18 anos, expôs Stefan Berglund, o representante na Alemanha do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (UNHCR), na inauguração da exposição "Crianças Refugiadas" na Bundeskunsthalle, em Bonn. A entidade presta atendimento a um milhão de refugiados no mundo.
Olhos de quem muito viu
O que distingue os portraits infantis do fotógrafo brasilieiro mundialmente famoso por fotografias de trabalhadores e seu projeto Êxodo, "é a expressão no olho das crianças", frisou Editha Limbach, presidente da Fundação Alemã de Ajuda a Refugiados da ONU. Por mais que um fotógrafo altere seu objeto ao fotografá-lo, "Salgado conseguiu expressar a personalidade das crianças, sua alma. Os olhos dessas crianças são olhos de quem viu muita coisa, de quem sabe muita coisa para sua pouca idade", disse a ex-deputada. Mas nem por isso são apenas olhares tristes, muitos revelam como que um brilho de esperança.
Sebastião Salgado sempre se deparou com bandos de crianças, nas viagens que fez para documentar acontecimentos como o retorno dos moçambicanos, após 30 anos de guerra civil. Isso foi em 1994, ano em que Hans-Hermann Klare, editor internacional do semanário Stern, conheceu o fotógrafo mineiro. Em várias partes do mundo as crianças cercam as equipes de jornalistas, cinegrafistas e fotógrafos, principalmente na África. "Eu acho que isso acontece mais nos países onde as pessoas têm a sensação de serem esquecidas por parte do governo ou dos que detêm o poder, sem falar no resto do mundo." É sempre uma grande agitação quando chega um forasteiro", disse Klare. O único jeito para conseguir trabalhar, foi prometer fotografar a garotada.
O segredo dos retratos de Salgado
O jornalista alemão disse admirar o jeito de Salgado lidar com as crianças, enquanto outros fotógrafos não sabiam como reagir à garotada que atrapalhava seu trabalho. "Mesmo sem falar a língua, ele consegue entrar em contato com os meninos, estabelecer uma relação. Ele ri, faz graça, pega um brinquedo, brinca com os meninos, faz de conta que fotografa [...] A relação que ele estabelece não precisa ser longa, uns minutos ou horas. E assim as pessoas adquirem confiança e isso torna possível fazer portraits como estes expostos em Bonn."
O trabalho do brasileiro destaca a individualidade em meio à massa anônima de pobres que passaram por grandes agonias e peripécias, o que está escrito em muitos rostinhos. "O forte em seu trabalho é que ele respeita as pessoas como seres humanos - por mais miseráveis e humilhantes que sejam as condições em que eles vivem naquele momento. Ele aceita as pessoas como elas são, ali onde estão, e mostra que se interessa pelo seu destino. Sebastião não lhes tira a dignidade" com sua câmara, resumiu Klare falando à DW-WORLD sobre o que mais admira no seu trabalho. A título de contraste, o jornalista mencionou muitas fotos sensacionalistas tiradas em momentos dramáticos, sem ética e sem qualquer respeito humano.
Embora não instrumentalize a pobreza, Salgado foi criticado, principalmente na Europa, por estilizar a pobreza. "Alguns acham que suas fotos são demasiado bonitas, a luz dá um efeito dramático, o retrato é construído." Segundo Hans-Hermann Clare, a dramaticidade de suas fotografias provavelmente tem a ver "com algo que ele já conhecia do Brasil, de seu estado, Minas Gerais, onde o católico e o barroco predominam." E isso teria sido muito antes de imigrar para a França, em 1969, em plena ditadura militar no Brasil. "Para europeus com maior influência protestante, é difícil de entender isso. Mas as críticas teriam mais a ver com o que as pessoas projetam nas fotografias, do que com elas propriamente.
Salgado e Ruanda, a tragédia africana
O momento mais trágico que Klare viveu ao lado de Salgado foi em 1994, em Goma, na República Democrática do Congo, quando um milhão de pessoas fugiram do genocídio em Ruanda. Era como se ambos tivessem descido ao inferno: epidemia de cólera, cadáveres que não puderam ser enterrados sendo removidos com buldôzers. "A miséria ultrapassava tudo o que nós tínhamos visto e o que se possa imaginar. Parecia irreal."
Um dia, eles foram visitar um acampamento de crianças órfãs e encontraram dezenas delas, de 3 a 5 anos, sentadas sobre um plástico numa tenda, sozinhas. Os poucos enfermeiros só tiravam as crianças para dar-lhes um banho, desinfetá-las, e trazê-las de volta. Mas ninguém tinha tempo de consolá-las, de dar-lhes um pouco de atenção. "Quando entramos lá, algumas choravam, outras que estavam perto da entrada se agarravam às nossas pernas, porque queriam que alguém se ocupasse delas, porque se sentiam sozinhas."
Não fechar os olhos à pobreza
Klare prossegue seu relato, emocionado: "Eu pensei nos meus filhos e não pude suportar isso. Acabei saindo 10 minutos depois, sabendo que eu não podia ajudar essas crianças. Não podia acabar com a sua solidão, nem suprir a falta de pai e mãe, nem apagar os horrores que eles possivelmente presenciaram como sobreviventes dessa guerra civil. Sebastião permaneceu mais tempo, começou a cantarolar e conseguiu tranquilizar, assim, as crianças.
Ele ficou lá quase uma hora e fez algumas fotos. Quando saiu, com lágrimas na face, disse que foi uma das piores situações que lhe tocou viver. "Eu sei que eu tenho que entrar nesses lugares, que tenho de fotografar, pois de nada adianta fecharmos os olhos diante da pobreza, só porque a achamos difícil de suportar. Precisamos encarar a pobreza - por pior que ela seja", disse Sebastião Salgado ao jornalista alemão.
A exposição vai até 1º de fevereiro de 2004.