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A capitã que desafiou autoridades para salvar refugiados

Helena Kaschel
30 de junho de 2019

Heroína para muitos e criminosa para outros, Carola Rackete foi presa por atracar navio com migrantes em porto italiano. "Suas vidas vieram na frente do jogo político", diz alemã de 31 anos, que agora enfrenta processo.

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A capitã alemã Carola Rackete
"Sei o risco que estou correndo", disse Carola Rackete antes de aportar na ItáliaFoto: Reuters/G. Mangiapane

A capitã alemã Carola Rackete sabia no que estava se metendo quando decidiu adentrar o navio de resgate Sea-Watch 3 em águas italianas nesta semana.

"Eu decidi entrar no porto de Lampedusa. Sei o risco que estou correndo, mas as 42 pessoas resgatadas estão exaustas. Estou levando-as para a segurança agora", afirmou Rackete na quarta-feira (26/06).

Neste sábado, ela foi detida pelas autoridades italianas; o navio, apreendido; e os 40 requerentes de refúgio ainda a bordo da embarcação foram autorizados a desembarcar. Rackete enfrenta agora um processo por navegar em águas italianas apesar da proibição imposta por Roma.

"Missão cumprida", escreveu no Twitter o vice-primeiro-ministro e ministro do Interior italiano, Matteo Salvini, do partido de extrema direita Liga. "Capitã criminosa presa, navio pirata confiscado, sentença máxima para uma organização não governamental estrangeira."

Os refugiados resgatados ficaram por mais de duas semanas a bordo do Sea-Watch 3 no Mar Mediterrâneo até Rackete tomar a decisão que pode lhe render uma multa de 50 mil euros, assim como acusações criminais no âmbito de uma nova lei que proíbe auxílio e cumplicidade com a imigração ilegal.

Ela pode ainda ser condenada a entre três e dez anos de prisão por forçar a passagem de seu navio contra uma embarcação militar que tentou bloquear o Sea-Watch 3.

Rackete relatou que o desespero dos que estavam a bordo era enorme, e foi isso que a convenceu a entrar no porto de Lampedusa. Segundo ela, alguns dos refugiados estavam pensando em saltar do navio em alto mar. Vários deles foram levados à terra em estado de "emergência médica".

"Não foi um ato de violência, foi um ato de desobediência. [...] A situação era desesperadora", disse ela em entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera, publicada neste domingo. "Meu objetivo era apenas levar essas pessoas exaustas e desesperadas à costa. Minha intenção não foi colocar ninguém em perigo. Eu já pedi desculpas, e reitero minhas desculpas."

Antes de ser detida, a alemã disse que foi obrigada a tomar uma atitude por contra própria porque não lhe restava outra opção. Seus esforços para encontrar uma solução política junto a autoridades italianas e europeias falharam, afirmou ela à revista online para jovens jetzt, do jornal alemão Süddeutsche Zeitung.

A capitã alemã Carola Rackete
Rackete foi levada sob custódia pela polícia italiana neste sábadoFoto: Reuters/G. Mangiapane

"Obrigação moral"

Mas quem é essa mulher de 31 anos disposta a entrar numa batalha contra o governo italiano? Rackete é capitã do Sea-Watch 3 desde 2018 e trabalha para a organização não governamental alemã Sea-Watch, que resgata refugiados no Mediterrâneo, há quatro anos.

Ela treinou para ser oficial náutica e completou seu mestrado em Gestão de Conservação na Universidade de Edge Hill em Ormskirk, na Inglaterra. Também trabalhou para o Instituto Alfred Wegener de Pesquisa Polar e Marinha, na Alemanha, e atuou no Greenpeace.

Rackete já comandou uma série de operações da Sea-Watch, tendo retirado 45 corpos que boiavam no mar após um naufrágio durante uma de suas primeiras missões.

A imagem de Rackete que emerge na mídia não é a de alguém que quer ser vista como oponente pessoal de Salvini. "O adversário dele é a sociedade civil como um todo", disse a capitã à agência de notícias alemã DPA. Trata-se de "princípio dos direitos humanos", afirmou.

Em entrevista ao jornal italiano La Repubblica, ela disse ser a responsável pelos que estavam a bordo, e essas pessoas "não podiam aguentar por mais tempo". "As vidas deles vieram na frente de qualquer jogo político", destacou.

A determinação de Rackete em ajudar pessoas necessitadas é, em suas próprias palavras, também resultado da vida comparativamente privilegiada que ela teve.

"Eu tenho pele branca, nasci em um país rico, tenho o passaporte certo, pude frequentar três universidades e me formei aos 23 anos", disse ela ao diário italiano."Sinto uma obrigação moral de ajudar as pessoas que não tiveram as mesmas bases que eu."

Sea-Watch 3, navio que resgata refugiados no Mediterrâneo
As autoridades italianas já haviam apreendido o Sea-Watch 3 em outra ocasiãoFoto: picture-alliance/dpa/Sea-Watch.org/C. Grodotzki

Herói ou criminosa?

Rackete atraiu muitos elogios e apoio por seu compromisso com os refugiados, inclusive de autoridades europeias, mas também foi alvo de hostilidades diretas.

Salvini não foi o único que classificou a capitã alemã de criminosa. O ministro italiano da Agricultura, Gian Marco Centinaio, acusou-a de tratar os italianos como "idiotas de aldeia". A líder do partido Irmãos de Itália, Giorgia Meloni, por sua vez, pediu que o Sea-Watch 3 seja "afundado".

Por outro lado, políticos de esquerda na Itália disseram considerar Rackete uma "mulher corajosa" e "uma esperança de um mundo mais humano".

Na Alemanha, o ministro do Exterior, Heiko Maas, afirmou que "resgatar vidas humanas é uma obrigação humanitária". "O resgate marítimo não deve ser criminalizado", acrescentou, frisando que agora "depende do poder judicial italiano esclarecer as acusações rapidamente".

Por sua vez, a líder do partido alemão A Esquerda, Katja Kipping, escreveu no Twitter que está "cheia de respeito" por Rackete e sua equipe.

O líder do Partido Verde, Robert Habeck, disse que a prisão da capitã revelou a face nefasta do governo italiano e que o "verdadeiro escândalo são os afogamentos que ocorrem no Mediterrâneo, a falta de rotas legais de fuga e a falta de um sistema de distribuição [de migrantes] na Europa".

O comissário para refugiados do estado alemão de Schleswig-Holstein, Stefan Schmidt, ex-agente de resgate marítimo, também expressou solidariedade. "Eu admiro a senhora Rackete porque manter a calma sob essas condições e ser um pilar de apoio aos refugiados a bordo não é uma tarefa nada fácil", disse ele à agência DPA.

Campanha em apoio à capitã

Em apoio a Rackete, personalidades de televisão alemãs conseguiram reunir mais de 500 mil euros para a Sea-Watch até este domingo. O comediante Jan Böhmermann e o apresentador Klaas Heufer-Umlauf lançaram um apelo de ajuda à ONG, expressando a sua indignação com a detenção da capitã alemã.

"Estamos convencidos de que uma pessoa que salva vidas não é uma criminosa", disse Böhmermann em um vídeo divulgado no YouTube.

Não só a Alemanha mas outros países europeus se solidarizaram com a causa. O ministro do Interior francês, Christophe Castaner, declarou que "o fechamento dos portos é uma violação do direito marítimo".

A França se disponibilizou a receber 13 dos migrantes a bordo do Sea-Watch 3. A Alemanha, por sua vez, receberá dez, e a Finlândia, oito. Os demais serão distribuídos entre Luxemburgo e Portugal.

Segundo os advogados de Rackete, antes de terça-feira deve ser realizada uma audiência para revalidar a prisão da capitã, na qual ela será finalmente interrogada. "Ela segue muito determinada em defender suas decisões", afirmaram eles. Seu objetivo era "manter a salvo essas pessoas que estavam em condições extremas".

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