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100 dias de um governo antifascista

Ynae Lopes dos Santos
Ynaê Lopes dos Santos
11 de abril de 2023

Ainda há muito o que ser feito após anos de destruição sob Bolsonaro, mas não se pode banalizar fato de que com Lula voltamos a ter um presidente preocupado com temas como indígenas, igualdade racial e combate à pobreza.

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Lula apresenta seus novos ministros em Brasília, em 29 de dezembro de 2022
Lula apresenta seus novos ministros em Brasília, em 29 de dezembro de 2022Foto: Ton Molina/Fotoarena/IMAGO

Em 7 de abril de 2018, Luiz Inácio Lula da Silva se entregou à Polícia Federal após fazer um discurso inflamado diante do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo. Sua prisão havia sido ordenada pelo então juiz Sergio Moro, que condenou o então ex-presidente pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro no caso que tinha um triplex no Guarujá como pivô. 

A prisão, ordenada mesmo sem provas minimamente contundentes, retirou Lula da disputa eleitoral de 2018, a primeira depois do golpe que retirou Dilma Rousseff do poder em 2016. Um processo travestido de impeachment que teve como "cereja do bolo" um elogio ao coronel Carlos Alberto Ustra, um dos maiores torturadores da ditadura militar e que havia torturado Dilma pessoalmente. Fato nem um pouco anedótico: o elogio fora feito pelo então deputado federal Jair Bolsonaro.

A convulsão política que marcou o Brasil a partir de 2013, ganhando novas proporções a partir de 2016 teve em outubro de 2018 um ponto de virada: sem Lula no páreo, o segundo turno da eleição presidencial acabou disputado por Fernando Haddad (PT) e Bolsonaro (PSL), que saiu vitorioso. E uma das primeiras medidas tomadas pelo presidente eleito foi convidar Moro para ser seu ministro da Justiça e Segurança Pública  convite que foi prontamente aceito.

É isso mesmo: o juiz responsável pela condenação de Lula – posteriormente anulada pelo STF –, não titubeou nenhum segundo em aceitar uma das mais importantes magistraturas federais do mantado do presidente cuja eleição tinha sido diretamente influenciada pela inelegibilidade de Lula.

Só isso já seria absolutamente escandaloso num sistema republicano e democrático. Mas, como bem sabemos, a história não parou por aí.

Escalada do fascismo

O que assistimos entre os anos de 2019 e 2022 foi a escalada do fascismo no Brasil. Não que a ideologia e as práticas fascistas fossem novidades por estas bandas. No entanto, nada foi comparável ao peso que o fascismo passou a ter na formulação de políticas públicas brasileiras nesse momento.

Não por acaso, no dia 15 de janeiro de 2019, foi assinado pelo então presidente um decreto que facilitava o acesso às armas de fogo, um documento muito representativo de uma das pautas mais defendidas e inegociáveis do governo do Bolsonaro. No cômputo geral, mais de 900 mil novos registros de armas foram feitos entre 2019 e 2022, um dado estarrecedor que demonstra como esse período foi marcado pelo crescimento da cultura e da indústria armamentista no Brasil.

Também tivemos ataques diretos e constantes à imprensa brasileira (sobretudo aos jornalistas mais críticos); a incitação da cultura do ódio, e, em meio a uma das maiores pandemias da história mundial, o descrédito da ciência, a demora na compra das vacinas e a zombaria em relação às centenas de milhares de mortos por covid. Além do uso deliberado da máquina pública para tentar garantir a reeleição.

Na realidade acho, sinceramente, que ainda não dimensionamos o que foram esses últimos anos.

Mas muito me impressiona os dedos apontados, sobretudo da imprensa tendenciosa, para vociferar sobre os primeiros 100 dias do atual mandato de Lula – o mesmo Lula que foi injustamente preso em 2018. Críticas sobre as políticas de juros, em meio à instabilidade do (Deus) mercado a cada decisão do atual presidente e às exigências por uma rápida recuperação da economia brasileira.

Um presidente que sabe presidir

Pois bem, para aqueles que têm memória curta ou que optaram deliberadamente pelo que lembrar e o que esquecer dos últimos quatros anos, trago um pouco de refresco.

Nesses últimos 100 dias, nada mais, nada menos que a cultura e os direitos humanos voltaram a compor a pasta ministerial do Brasil. Os povos indígenas e a igualdade racial também ganharam seus respectivos ministérios.

A Funai (agora comandada por uma mulher indígena, Joênia Wapichana) está tomando as medidas necessárias para tentar estancar a tragédia yanomami.

A injúria racial passou a ser tipificada como crime. As religiões de matriz africana (constante e historicamente perseguidas) têm agora o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé para nos ajudar a lembrar da necessidade ainda urgente da eliminação da discriminação racial. E Lula assinou um decreto que garante que 30% das vagas em cargos de comissão e funções de confiança na estrutura do Poder Executivo sejam reservados a negros e negras.

O decreto que facilitou o acesso às armas foi revogado.

A imprensa voltou a trabalhar com segurança e respeito, podendo, parte dela, destilar seus interesses liberais por meio de editoriais escusos (para dizer o mínimo).

Há uma preocupação latente com o crescimento de ações fascistas e terroristas, sobretudo nas escolas brasileiras.

Os preços da carne, do feijão e da gasolina baixaram.

O Brasil voltou a ser respeitado nos debates internacionais.

Temos um presidente que, em meio às mortes e destruição causadas por chuvas e enchentes, se comove, e vai pessoalmente conversar com as vítimas e auxiliar as entidades governamentais em âmbito municipal e estadual. Muitos dirão que ele não faz mais do que sua obrigação. E isso é verdade. Temos um presidente que sabe presidir, e que não faz ouvidos moucos (ou resolve andar de jet ski) nos momentos de calamidade.

Sinto-me um tanto repetitiva nessa coluna. Mas, paciência. Reconheço que ainda há muito o que ser feito, mesmo porque a destruição foi grande e também porque os caminhos de reconstrução são vários. Mas não podemos banalizar o fato de que temos há mais de 100 dias um governo que é, sem dúvida alguma, antifascista.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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Ynaê Lopes dos Santos defende que não há como entender o Brasil e as Américas sem analisar a estrutura racial que edifica essas localidades; e que a educação tem um papel fundamental na luta antirracista.