Julgamento do caso Sankara deve ser seguido "com atenção"
9 de outubro de 2021Segundo a diretora da organização não-governamental de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch, é preciso dar a maior atenção à forma como vai ser conduzido o julgamento, pois "trata-se do julgamento de acusações contra o antigo Presidente Blaise Campaoré", disse. "As diligências jurídicas, a constituição e a demonstração de prova serão justas? O processo será transparente?", questionou.
Carine Kaneza-Nantulya, que é diretora para os assuntos jurídicos na divisão de África da referida organização, questionou ainda se "os advogados poderão vir a recorrer das decisões do tribunal militar?", afinal são "estes são elementos aos quais devemos dar a maior atenção", disse a diretora.
Muitos analistas têm sublinhado que o atual chefe de Estado do Burkina Faso, Roch Marc Christien Kaboré, está empenhado em registar vitórias políticas, numa altura em que se sente particularmente acossado por exigências de justiça e de boa governança.
"Agenda política por detrás do julgamento"
Kaneza-Nantulya também se interroga pessoalmente sobre se o julgamento "será uma forma de resposta à intensificação do escrutínio sobre a sua governação e de [Kaboré] obter algum reforço de legitimidade", porém, enquanto "responsável" da HRW, inibe-se de "especular sobre qualquer eventual agenda política por detrás deste julgamento".
Ao invés, a ativista sublinha que há 12 pessoas a serem julgadas e não dissocia o julgamento que se inicia esta segunda-feira (11.10) da futura presença perante a justiça burquinabê do irmão mais novo de Campaoré, cuja extradição para o Burkina Faso Paris decidiu em julho último depois de um longo processo nos tribunais franceses.
"Temos o Blaise Compaoré, mas também François Compaoré, irmão do antigo Presidente, [que será julgado] por alegado envolvimento no assassinato de um proeminente jornalista de investigação, Nobert Zongo, em 13 de dezembro de 1998. Penso que também isto deve ser acrescentado", sublinhou Kaneza-Nantulya.
Thomas Sankara deixou uma marca indelével em África, onde ficou conhecido com o "Che Guevara Africano". Foi um líder icónico, assumiu o poder muito jovem, com apenas 39 anos, na sequência da revolução de 4 de agosto de 1983, onde combateu ao lado dos seus irmãos de armas e se assumiu como "protagonista de uma história fantástica de amizade e solidariedade entre as revoluções africanas dos anos 80", na expressão de Carine Kaneza-Nantulya.
Logo no ano seguinte à sua chegada ao poder, Sankara mudou o nome do país, numa tentativa de enterrar com as insígnias da República do Alto Volta a herança do poder colonial francês. O país de Sankara passou a chamar-se República Democrática e Popular do Burkina Faso, que significa "país do povo honesto".
Assassinato
O "Che Africano" acabaria por ser derrubado por um dos seus companheiros mais próximos, Blaise Compaoré, na altura vice-Presidente. Foi assassinado em 15 de outubro de 1987, juntamente com 12 dos seus companheiros.
Compaoré manteve-se no poder até 31 de outubro de 2014, ano em que foi deposto por uma revolta popular quando tentava alterar a Constituição do país e garantir a perpetuação no poder. Vive desde então na Costa do Marfim, onde obteve a cidadania, que lhe garante agora não ser extraditado para ser julgado no Burkina Faso, por uma "entidade judicial de exceção", como sublinharam esta quinta-feira os seus advogados.
"O Presidente Blaise Compaoré não comparecerá - assim como nós também não - no julgamento político organizado contra ele pelo tribunal militar de Ouagadougou, ou seja, perante uma entidade judicial de exceção", anunciaram os advogados franceses e burquinenses de Compaoré numa declaração.
Os advogados, Pierre-Olivier Sur e Abdoul Ouedraogo, afirmaram ainda que o seu cliente nunca foi "convocado para qualquer interrogatório" e que "nenhum ato lhe foi notificado, exceto a sua citação final para comparecer perante a jurisdição de julgamento".
Circunstâncias da morte mantidas em segredo
"As circunstâncias da morte de Sankara foram mantidas em total segredo durante o período em que Blaise Compaoré esteve no poder e isso, só por si, faz aumentar as suspeitas de que ele possa, de alguma forma, ter estado envolvido ou ter tido conhecimento. Seguramente sabia, mas até que ponto foi cúmplice ou participou no assassinato, tem que ser estabelecido", afirmou a ativista da HRW.
Carine Kaneza-Nantulya fez, por outro lado, questão de dar relevo a "outra mensagem" que este julgamento envia, com o cuidado de começar por sublinhar como "é importante que a justiça seja feita no caso do assassinato de Sankara, não apenas pela sua família, mas pelo povo do Burkina Faso. Sankara faz parte da herança política daquele país. É importante que a justiça seja feita". "Mas este processo também nos faz pensar nas atuais exigências de justiça e de responsabilização por crimes recentes", contrapôs a ativista.
"Perguntamos quando será trazido perante a justiça o massacre de mais de 130 civis em Solhan, no nordeste do Burkina Faso, em junho último. E os massacres em 2018, 2019, e 2020 no Sahel? E o alegado massacre em Djibo, no norte do Burkina Faso, de 31 detidos pelas forças de segurança? Estamos a falar de coisas que aconteceram no ano passado (2020)", sublinhou."E tem havido muito poucos progressos no quadro da justiça em relação a estes casos", rematou Kaneza-Nantulya.
Investigações
"As investigações do HRW mostram muito claramente que um dos principais motores do recrutamento por parte dos grupos radicais islâmicos a atuar no Sahel é a impunidade, a falta de responsabilização dos autores das violências e a continuação do ciclo de abusos cometidos pelas forças de segurança durante operações de contraterrorismo", reforçou a responsável da organização não-governamental de defesa dos Direitos Humanos.
"Onde é que isto se encaixa no pensamento e modus operandi da justiça militar no Burkina Faso de hoje?", perguntou ainda.
"A aplicação da justiça no caso da morte de Thomas Sankara é muito importante, é crítica, tem um enorme significado. Mas, para que esta iniciativa tenha consequências, será igualmente importante que o atual Governo, em primeiro lugar, garanta um julgamento justo e transparente, mas depois que vá além do julgamento, assegurando que o legado de Camporé não voltará a repetir-se", concluiu Kaneza-Nantulya.