"É urgente dobrar orçamento", afirma presidente da Corte IDH
23 de fevereiro de 2016Após servir como um dos sete juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), Roberto Caldas, de 53 anos, assumiu a presidência do tribunal na semana passada. Ele é o segundo brasileiro a assumir a chefia da corte vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA), que tem sede em San José, na Costa Rica. Cabe à Corte IDH garantir a aplicação e interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 nos países que a ratificaram.
Advogado com quase 30 anos de experiência na promoção dos direitos humanos, Caldas passou a fazer parte da corte em 2013. Em entrevista à DW Brasil, ele fala sobre as dificuldades enfrentadas pelos juízes que analisam os casos de violações protocolados na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), responsável por filtrar as denúncias. Para Caldas, um dos principais desafios é superar as dificuldades financeiras enfrentadas pelo tribunal, que recebe 20 casos novos por ano.
DW Brasil: Quais são seus planos à frente da Corte IDH nos próximos dois anos?
Roberto Caldas: A corte tem uma jurisprudência já consolidada, muito respeitada. Nosso plano é manter a linha jurisprudencial evolutiva de acatamento aos direitos humanos. A Corte IDH sempre julga casos exemplares. Não é um tribunal de quantidade de processos, mas de qualidade. Queremos manter isso, e queremos avançar na institucionalidade.
A Corte IDH tem um orçamento anual de apenas 5,7 milhões de dólares, sendo que 3 milhões vêm de convênios com organismos internacionais, quase todos firmados com a Europa. Esse orçamento apertado afeta as atividades do tribunal?
É um número certamente menor do que o de qualquer tribunal do Brasil, menor até do que o de alguns juizados individuais. Comparando com outros tribunais internacionais, este é o com os menores recursos. E a Corte IDH não é a menos importante, muito pelo contrário. Ela é reconhecida pela academia e por importantes organismos. Nós merecemos um olhar melhor. Veja só a diferença entre a corte interamericana e o Tribunal Penal Internacional (TPI). Enquanto nós recebemos apenas 2,7 milhões de dólares via OEA, o TPI tem um orçamento de 115 milhões. É uma diferença enorme.
Isso nos obriga a ir atrás de cooperação internacional, algo que deveria ser apenas para projetos mínimos, e não para a sobrevivência da corte. Por causa disso não podemos ter juízes em tempo integral, já que a corte não tem recursos para mantê-los trabalhando o tempo todo. Não temos sequer o básico para a revisão de sentenças. As próprias traduções são irregulares e sem revisão. É urgente que tenhamos pelo menos o dobro do orçamento.
O fato dos países da OEA que ratificaram a convenção não enviarem recursos suficientes demonstra que eles não dão a devida importância à Corte IDH?
Não é algo deliberado. É mais uma inércia, vamos dizer. A região sempre está lutando por recursos. A tradição era de uma corte pequena, sem recursos financeiros. Talvez tenha sido uma inércia que surgiu com o tempo, mas agora nós queremos estruturar a corte como um tribunal, e queremos divulgar isso.
Certamente alguns mandatários dos países maiores não têm ideia de que a corte é tão pequena e que sua participação financeira é tão diminuta. A Corte IDH tem uma importância cada vez maior na jurisprudência dos Estados nacionais, inclusive determinando mudanças e influenciando na modificação legislativa e constitucional. Isso é muito importante em uma região pobre e onde a institucionalidade é frágil.
Ainda existe no Brasil e em outros países membros do sistema interamericano um certo desconhecimento do trabalho da Corte IDH?
A cultura social e jurídica na região vem de períodos autoritários em que os direitos humanos eram uma expressão proibida, considerados coisa de subversivo. Havia esse tipo de imaginário. Várias gerações, inclusive de juristas, foram formadas sem sequer estudar direitos humanos. É muito importante que os países coloquem em seus currículos escolares, e especialmente nos universitários, temas ligados aos direitos humanos.
A cultura política da região, que muitas vezes é marcada pelo nacionalismo, interfere na aceitação das decisões de uma corte internacional?
Creio que isso ocorre com qualquer tribunal que age com o devido rigor contra decisões do poder público. Na corte, o Estado nacional é que está sempre na posição questionada, mesmo que o ato em si tenha sido cometido por um particular. Claro que nesse caso surgem questões que partem de uma cultura em que indivíduos nem percebem o que é violação de direitos humanos. Então é uma luta constante em cada país. Porém, nós temos avançado. Não na velocidade que desejamos, mas a evolução é constante. Já estivemos muito mais longe, já contamos com menos instituições e normas garantidoras. É uma construção cotidiana.
A presença de um juiz brasileiro na presidência da corte pode influenciar o país de alguma forma?
É sempre muito positivo quando alguém se identifica. A comunidade jurídica brasileira percebe que está identificada e representada, e que essa corte também é sua. O Brasil ingressou no sistema tardiamente. Só em 1998 é que o país aceitou a competência contenciosa da Corte IDH. Nesses 18 anos tem havido uma evolução, mas agora achamos que este é um ponto para avançar exponencialmente não apenas sobre a convenção americana, como também na jurisprudência da corte.
Em 2010, a corte condenou o Brasil no caso envolvendo a guerrilha do Araguaia e pediu que os responsáveis fossem punidos e que os criminosos não possam ser beneficiados pela lei da Anistia. Só que STF não se manifestou até agora sobre a decisão. Qual é a posição da corte sobre isso?
As decisões da corte, como as de alguns tribunais internacionais, o europeu inclusive, tem vários itens da sentença, como o pagamento, mudança de políticas públicas, interpretação de tribunais. Então muitas vezes a interpretação dos tribunais sobre a convenção precisa ser coerente com a da corte. Nesse caso pode ser necessário um tempo maior para que o Judiciário, que não tem a velocidade de um Poder Executivo, por exemplo, decida. Então às vezes há casos como esse, que demoram no cumprimento. Nós sempre esperamos que ocorra o mais rápido possível.
Após o julgamento do mensalão pelo STF, alguns condenados levaram seus casos para a Comissão Interamericana. Existe alguma possibilidade de eles chegarem à Corte IDH?
Essa é uma questão que ainda está no Judiciário nacional e na comissão. Não é hora de opinar sobre isso. Existe, é claro, a possibilidade teórica de que todos os casos entregues na comissão cheguem à corte.
Como a Corte IDH encarou a saída da Venezuela do sistema americano. Isso afetou os casos envolvendo o país?
Os casos que já corriam no tribunal continuaram a ser julgados normalmente. Mas, quando esses casos acabarem, ela não deve mais participar porque vai acabar a competência jurisdicional da corte. A Venezuela pelo menos esteve por algum tempo no sistema. Há países, como os EUA e o Canadá, que nunca aderiram ou ratificaram a convenção. Dos 35 países signatários da convenção, só 20 participam efetivamente. O que nós precisamos é a universalização da ratificação da convenção americana. Afinal, todos esses países participaram da elaboração.
Os EUA não ratificaram a convenção americana dos direitos humanos, mas a sede da Comissão Interamericana, que faz a primeira análise das denúncias, fica em Washington. Isso não é uma contradição?
Eu acho que é uma questão política que os Estados têm que resolver. Não nos cabe como órgão judicial opinar sobre isso. Se há uma coisa que eu pretendo nesses dois anos é deixar a corte marcada absolutamente como um tribunal típico. Nós não devemos entrar nas discussões políticas e episódicas que ocorrem nos Estados.
No Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, as denúncias são enviadas diretamente aos juízes, ao contrário da Corte IDH, onde a comissão é responsável pela análise inicial. Qual é o melhor modelo?
Na Corte IDH, nós ainda estamos falando de uma estrutura mínima para sete juízes que não têm a possibilidade de se dedicar em tempo integral. A corte europeia tem 47 juízes em tempo integral. São estruturas diferentes. Acreditava-se também que a estrutura direta daria maior rapidez, mas o fato é que o tribunal europeu também está com muitos casos na fila. Não se sabe qual é o sistema ideal. A discussão sobre o papel da comissão não cabe a mim, mas o que eu percebo como um sistema que está funcionando da forma que é possível.