É preciso negociar com o Talibã, mas como?
3 de setembro de 2021Em princípio, os governos ocidentais dizem que não negociam com terroristas. Muitas vezes, porém, a realidade é bem diferente. Há muitos exemplos de como representantes governamentais se sentaram à mesa de negociações com membros de organizações responsáveis por ataques terroristas – ainda que relutantes. Foi assim, por exemplo, ao lidarem com o Exército Republicano Irlandês (IRA) ou a Organização para a Libertação da Palestina (OLP).
No caso do Afeganistão, a questão da negociação é tão delicada quanto polêmica, já que os militantes islâmicos talibãs praticamente tomaram como refém quase toda uma população. Trata-se de um argumento de negociação poderoso: quem quiser ajudar o povo afegão, terá que passar pelo Talibã.
Em setembro de 1996, após a conquista de Cabul, os talibãs estabeleceram o "Emirado Islâmico do Afeganistão". Seu reinado de terror durou cinco anos – até a invasão das tropas internacionais em 2001. Agora, eles estão de volta ao poder.
No que concerne a comunidade internacional, a questão é evitar o pior nesse país dilacerado pela guerra. Isso inclui violações graves dos direitos humanos, movimentos maciços de refugiados, numerosas mortes pela fome, e a transformação do Afeganistão, mais uma vez, num polo para organizações terroristas – como a Al-Qaeda ou o assim chamado "Estado Islâmico" (EI). Observadores também temem pelo futuro do país, que por sua localização entre o centro e o sul da Ásia, tem importância geoestratégica.
Merkel acredita em possível cooperação
Há meses, mediadores internacionais vêm mantendo negociações com líderes do Talibã em Doha, capital do Catar. Agora os países ocidentais canalizam seus esforços para a evacuação de mais afegãos necessitados de proteção.
A chanceler federal da Alemanha, Angela Merkel, aparentemente está contando com a boa disposição dos governantes de Cabul em cooperar. "Nosso objetivo deve ser preservar o máximo possível do que alcançamos em termos de mudança no Afeganistão, nos últimos 20 anos", disse recentemente no Bundestag (câmara baixa do parlamento alemão) acrescentando: "O Talibã agora é uma realidade no Afeganistão."
O ministro alemão do Exterior, Heiko Maas, também considera as negociações inevitáveis: não há "absolutamente nenhuma maneira de contorná-las", disse em Doha. A fim de avaliar a situação na região, ele já havia visitado quatro países que fazem fronteira com o Afeganistão. No entanto, Maas deixou claro que, pelo menos por enquanto, um encontro direto com os líderes do Talibã está fora de questão.
Ao que tudo indica, o governo alemão quer evitar tudo que possa parecer um reconhecimento oficial dos novos dirigentes. Em Doha, o ex-embaixador alemão no Afeganistão, Markus Potzel, é quem faz o contato com a delegação dos fundamentalistas islâmicos.
Sem expectativas exageradas
Tanto em Doha quanto em Cabul, o Talibã está tentando mudar sua imagem e se apresentar como um governo moderado e legítimo que a população não precisa temer. Seus líderes inclusive aceitaram ser entrevistados por jornalistas do sexo feminino. Por outro lado, houve relatos de violência em diversas províncias, e meninas têm sido impedidas de frequentar a escola e mulheres, de trabalhar.
No entanto, negociações com o Talibã são praticamente obrigatórias "para retirar do Afeganistão os colaboradores remanescentes e os indivíduos mais vulneráveis", comentou Joachim Krause, diretor do Instituto de Política de Segurança da Universidade de Kiel, em e-mail à DW.
Ele alertou ainda contra expectativas excessivamente altas, afirmando que só faz sentido negociar a evacuação de ex-colaboradores locais e suas famílias. Qualquer outra coisa, como tentar evitar um êxodo geral ou o retorno de grupos terroristas, tem poucas chances de sucesso.
"Como o Talibã poderia impedir um movimento de fuga descontrolado ou mesmo o retorno de grupos terroristas estrangeiros? Eles controlam, afinal, apenas parte do país. E não queremos que eles evitem uma onda de refugiados simplesmente atirando em quem tenta fugir", advertiu Krause.
O especialista em política de segurança também vê os alemães numa posição frágil para negociações: tendo fracassado em retirar todas as suas forças do país, a Alemanha "já se tornou suscetível à chantagem". "Quer gostemos ou não, temos que concordar com as condições estabelecidas pelo Talibã para ajudar essas pessoas a partirem."
Isso pode envolver exigências de dinheiro, ou talvez também de gêneros alimentícios ou medicamentos. Uma avaliação inicial das operações de resgate alemãs mostra que, no fim de agosto, apenas 138 colaboradores locais haviam sido retirados do Afeganistão. O Ministério do Exterior calcula que cerca de 50 mil ainda aguardam a evacuação.
Interesse próprio impulsiona negociações
O sucesso das negociações depende da disposição dos talibãs de honrarem os acordos negociados. Nesse aspecto, o cofundador e codiretor do grupo de estudos independente Rede de Analistas do Afeganistão (AAN, na sigla em inglês), Thomas Ruttig, é um pouco mais otimista, pois crê que os islamistas precisam abraçar o progresso por interesse próprio.
"O Talibã necessita de todo tipo de ajuda econômica, não importa de onde venha, já que, depois de 40 anos de guerra, a infraestrutura do país está completamente destruída." Seria contraproducente para os talibãs começar a chantagear governos estrangeiros, pois "isso colocaria em risco a chance de enfim trazer dinheiro para o país", argumenta Ruttig.
A Alemanha e outros países pararam de enviar ajuda para o desenvolvimento. Além disso, as contas afegãs no exterior foram congeladas e os pagamentos ao país ficaram mais difíceis. As remessas de dinheiro do exterior foram canceladas. Casas de câmbio e agências de transferência, como a Western Union, estão fechadas. O país, que há muito tem dificuldade em sustentar seus 39 milhões de cidadãos, está agora à beira da ruína.
Corte com o terrorismo islâmico?
O Talibã, que deseja conquistar os corações e mentes da população, está ciente de que o Afeganistão dificilmente sobreviverá sem ajuda externa. Justamente por isso, o fundador da AAN parte do princípio que os fundamentalistas não permitirão que o país se torne novamente um polo do terrorismo islâmico.
"Pois assim estariam sujeitos a retaliação e a mais sanções, e não podem se dar a esse luxo. Acredito que os talibãs são bastante experientes: eles não devem ser subestimados como um bando de barbudos medievais, como costuma acontecer."
Para os próximos meses, ele defende o enfoque nas questões humanitárias, além de um monitoramento da situação, para ver se o Talibã se tornará mais repressivo: é preciso estar bem claro que o grupo deve aderir aos padrões internacionais.
Ao mesmo tempo, porém, Ruttig avalia que as lideranças ocidentais não devem assumir uma atitude de superioridade: "Depois do que o Ocidente fez ou tolerou no Afeganistão, incluindo supostos crimes de guerra e violações dos direitos humanos, temos que nos abster de tal comportamento." Por outro, acrescenta, não há muito tempo para um sucesso nas negociações, pois a situação no país piora a cada dia.