Uma terrível sensação de déjà-vu em Paris
14 de novembro de 2015Na esquina da rua Oberkampf com o boulevard Richard Lenoir, em Paris, a imagem na manhã deste sábado constitui uma espécie de terrível déjà-vu. De um lado, barreiras policiais, viaturas, unidades armadas antiterrorismo; do outro, uma aglomeração de carros de transmissão da TV, câmeras, jornalistas à procura de pessoas para entrevistar.
A situação é exatamente a mesma que no início de janeiro, por ocasião do atentado contra a redação do semanário satírico Charlie Hebdo, a cerca de um quilômetro de distância. Pois, atrás do próximo quarteirão, está a avenida Voltaire, onde transcorreu a parte mais sangrenta e medonha da atual série de ataques: o Club Bataclan.
Estima-se que o número de mortos vai subir ainda mais, pois são muitos os feridos graves nos hospitais da capital francesa. E ninguém ainda pode estar seguro se, no decorrer do dia ou da noite, o grupo terrorista não voltará a atacar, seguindo o padrão de comportamento já visto em janeiro.
Entre compaixão e quotidiano
Por volta do meio-dia, chegam os primeiros parisienses com flores, rosas brancas e vermelhas, que eles depositam ao lado das barreiras. Só de longe se vislumbra a fachada vermelho-carmim do teatro histórico do século 19, onde se situa o clube, palco do atentado da noite anterior.
Na frente, a polícia montou um laboratório móvel, a fim de identificar os restos mortais das vítimas. Muitos ainda estão desaparecidos. Os telefones de emergência estão totalmente sobrecarregados, e os funcionários não sabem responder às numerosas perguntas. Pais desesperados seguem vasculhando os hospitais, à procura dos filhos.
No lado aberto do boulevard, contudo, o tráfego continua fluindo, os táxis se acumulam nos cruzamentos. Os jornais matutinos estampam fotos sangrentas e manchetes como "Choque e terror". Os moradores do bairro, contudo, seguem em seus afazeres normais.
O açougueiro Olivier dá de ombros, enquanto apara uma peça de carne de vitelo em seu pequeno negócio. "O que se pode fazer contra uma loucura destas?" Ele diz não se sentir mais intranquilo do que o usual: se alguém invadir seu açougue com uma arma, ele também não vai poder fazer nada.
Ódio contra os muçulmanos? "Não, isso é maluquice, são loucos isolados." Ele tampouco atribui a culpa ao governo. "O que é que eles vão fazer? Colocar um policial atrás de cada árvore? A vida continua", resume o jovem açougueiro, sem agitação, quase com fatalismo.
Governo Hollande sem culpa
Ao lado, o vendedor de vinhos na rua Oberkampf tampouco faz acusações contra o governo do presidente François Hollande. "Eles introduziram medidas apropriadas", diz Cyril, e concorda com seu vizinho que não se pode colocar um policial atrás de cada cidadão. Ele vive no bairro, bem na esquina do restaurante Le Petit Cambodge, onde os terroristas fuzilaram mais de uma dezena, na primeira onda dos atentados.
"Eu tinha acabado de receber amigos para jantar e nós escutamos 'pop, pop, pop' do lado de fora. Eu ainda disse: 'Mas que idiotas são esses, não é feriado nacional de 14 de Julho.' Mas aí logo compreendemos que eram tiros de verdade de um rifle automático, e não fogos de artifício. E aí pensei: 'Se os meus amigos tivessem chegado meia hora mais tarde, também eles poderiam estar mortos.'"
O comerciante de vinhos observa as ocorrências com ar filosófico: "Numa situação assim, a pessoa reflete sobre a vida, sobre como ela pode acabar de um momento para o outro, assim, sem nenhum motivo. E a gente vê na televisão as imagens das crianças mortas no Mediterrâneo. [Os refugiados] são também atingidos, assim como nós."
Cyril atribui a motivação dos novos atentados à política equivocada para o Iraque e em relação ao horror da guerra civil na Síria. Mesmo assim, não responsabiliza o governo francês por sua participação nos bombardeios contra o grupo jihadista "Estado Islâmico" (EI). Do ponto de vista da política externa, o país não podia se manter de fora.
O "Estado Islâmico" reivindicou a responsabilidade pelos atentados. Ainda durante a noite, adeptos da milícia terrorista já comemoravam os crimes no Twitter.
Fatalismo coletivo da burguesia
Na padaria de luxo ao lado, os fregueses fazem longas filas, à espera dos pães e croissants. Embora o governo tenha instado os cidadãos a se manterem em casa, dentro do possível, praticamente ninguém parece acatar a recomendação. É difícil imaginar uma população mais plácida e tranquila do que esta.
Um jovem pai de família, que aguarda na fila, comenta que sente pena por causa de seus filhos. "Tudo está fechado, as escolas, as piscinas, os museus, não se pode fazer nenhum programa." De resto, ele é a favor que se continue vivendo normalmente: não se deve dar aos terroristas a satisfação de mudar a própria vida por causa deles.
Também o rapaz não sabe direito o que o governo ainda poderia fazer, além das abrangentes medidas antiterrorismo já adotadas. Não se pode prender todo o mundo que pareça suspeito, observa. No programa da manhã do canal de notícias, um comentador conservador propusera algo do gênero.
"Eles têm que renunciar, o governo Hollande fracassou", investe o vizinho na fila do padeiro. Porém nenhum dos demais o apoia. "Desse jeito a gente estaria cedendo aos terroristas, desestabilizando a nós mesmos", murmura uma senhora com um bolo na mão. Os fregueses dessa padaria de luxo são da burguesia parisiense, e o que parece uni-los nessa manhã, apesar de toda a abominação e repúdio aos atos da noite anterior, é uma espécie de fatalismo coletivo.
"Não podemos odiar todos os muçulmanos por causa disso. Assim é a vida, ninguém pode impedir nem prever o que vai acontecer. A vida continua", é o sentimento quase generalizado. E, claro, todos sentem enorme compaixão, sobretudo pelos pais dos jovens que perderam a vida durante a noite, no Club Bataclan.
"É tão horrível. Por que eles fazem um massacre desses entre os jovens?", lamenta uma senhora. Por enquanto essa pergunta permanecerá sem resposta.