Uma fabricante de fornos alemã como cúmplice do Holocausto
27 de janeiro de 2020Auschwitz-Birkenau, Buchenwald, Dachau, Mauthausen: por toda parte onde os soldados da coalizão anti-Hitler adentravam os campos de concentração e extermínio, após o fim da guerra, eles deparavam com montes de cadáveres e com crematórios ostentando o logotipo de uma firma alemã, J.A. Topf & Söhne.
A conceituada empresa familiar entrara em negócios com a tropa de elite nazista SS, fornecendo para os campos de extermínio o equipamento que possibilitaria o genocídio.
Fundada em 1878, em Erfurt, por Johannes Andreas Topf, a companhia se especializara na fabricação de instalações para cervejarias, exportando seus produtos por todo o mundo. Após a Primeira Guerra Mundial, seus diretores descobriram um novo negócio: fornos para crematórios municipais. Na República de Weimar, o fabricante de fornos do leste do país se tornou campeão de mercado, graças à "aplicação otimizada dos preceitos da piedade".
Após a tomada do poder por Adolf Hitler, os negócios simplesmente seguiram em frente. Ambos os presidentes da firma, Ludwig Topf e seu irmão Ernst Wolfgang, agora membros do partido nazista, podiam ver da janela de seu escritório a colina Ettersberg, onde desde julho de 1937 os nazistas mantinham o campo de concentração de Buchenwald.
Ambição e falta de escrúpulos
Buchenwald foi o primeiro a encomendar os fornos. O número crescente dos mortos por torturas e doenças representava um problema sério para a direção dos campos da SS. Após a invasão da Polônia, em 1º de setembro de 1939, os locais se encheram de novos presos, em Buchenwald ocorreu mortandade em massa.
Ainda antes do início da Segunda Guerra, a SS se informara sobre a possibilidade de instalar um crematório na área do campo de extermínio. Em maio de 1939, o engenheiro-chefe Kurt Prüfer apresentou o primeiro esboço de um "forno de incineração Topf móvel, aquecido a óleo". "Esse forno marcou a ruptura radical com a cultura e a lei do rito fúnebre de cremação. Nele os cadáveres eram queimados como lixo", escreve Annegret Schüle, curadora do memorial no terreno da antiga fábrica.
Esse primeiro êxito animou Prüfer. Em breve ele oferecia por conta própria à SS um modelo com duas câmaras de incineração, colocado em funcionamento em Dachau em novembro de 1939. Em seguida o ambicioso engenheiro desenvolveu seu primeiro forno estacionário para campos de concentração. A firma estava tão orgulhosa pelo próprio desempenho que patenteou esse modelo.
"A postura de Prüfer, caracterizada por iniciativa própria sem escrúpulos morais, era sintomática da atitude dos quadros técnicos", explica Rüdiger Bender, presidente do círculo de amigos do memorial Topf & Söhne, frisando que os diretores técnicos não eram nazistas convictos.
"A empresa nunca foi forçada a construir crematórios. Pelo contrário, ela tentava se impor perante os concorrentes como Heinrich Kori, de Berlim", confirma a curadora Schüle. Em parte por iniciativa própria, os engenheiros desenvolveram fornos cada vez mais eficientes. "Sempre com prazer a seu serviço", diziam as cartas da Topf à SS.
Nova dimensão do genocídio
Com a decisão da liderança nazista de transformar Auschwitz-Birkenau no principal sítio do Holocausto, a cumplicidade dos fabricantes de fornos de Erfurt ganhou uma nova dimensão.
"Depois que a SS descobriu em Auschwitz que com [o gás tóxico] Zyklon-B se podia matar milhares de pessoas em poucos minutos, seu grande problema era como fazer desaparecer sem vestígios o grande número de cadáveres", conta Schüle. Os potentes fornos de incineração da Topf & Söhne eram a resposta.
Em 19 de agosto de 1942, o departamento de construção da SS se reuniu com Prüfer, e decidiu-se construir três grandes crematórios. Mais tarde vieram outros dois. No verão de 1944, queimavam-se diariamente em Auschwitz até 9 mil cadáveres.
O sucesso de Prüfer era uma pedra no sapato de seus colegas: em setembro de 1942, seu superior Fritz Sander apresentou sua nova invenção, um forno com várias camadas de isolamento, capaz de incinerar cadáveres ininterruptamente, segundo o "princípio da linha de montagem".
Para fazer funcionar os aparatos, os técnicos de Erfurt passaram muito tempo em Auschwitz, e estavam informados sobre os assassinatos em massa. Entre eles, o montador Heinrich Messing, membro do Partido Comunista, cujas convicções ideológicas não o impediram de realizar o trabalho no campo de extermínio com toda eficiência e mais rápido do que planejado.
"Teoricamente, ele poderia ter sabotado, atrasado essa empreitada. Mas não o fez", acusa Bender. E Schüle escreve: "Com a tecnologia de extermínio humano e eliminação de cadáveres, no começo dos anos 1940 a empresa de Erfurt J.A. Topf & Söhne só obteve 2% do faturamento daqueles anos." Apesar disso, a companhia pode ser classificada como um "objeto de pesquisa exemplar para a cumplicidade no Holocausto".
Um herdeiro toma a palavra
Após a derrota da Alemanha, em maio de 1945, Ludwig Topf se suicidou: informado por oficiais americanos que seria preso, mordeu uma cápsula de cianureto. Em sua carta de despedida, alegou inocência: "[...] O povo quer ter suas vítimas sacrificiais. Então quero fazê-lo, eu mesmo. Sempre fui decente – o contrário de um nazista – todo mundo sabe disso." O engenheiro-chefe Prüfer morreu em 1952 num campo soviético.
Ernst Wolfgang Topf fugiu para as zonas ocupadas no Oeste, onde reergueu a firma. As investigações contra ele foram suspensas. Só o livro Macht ohne Moral – eine Dokumentation über die SS (Poder sem moral – uma documentação sobre a SS), de uma vítima de um campo de concentração, lembrou a opinião pública das atividades anteriores da empresa. Depois de lhe ser negado um crédito, ela faliu.
Até a reunificação da Alemanha, em 1990, permaneceu oculto o passado nazista da firma original. Estatizada pelo regime socialista da Alemanha Oriental e operando como VEB Erfurter Mälzerei- und Speicherbau (EMS), ela abriu insolvência em 1994. A opinião pública só foi alarmada por uma tentativa dos herdeiros Topf de readquirir partes da firma, após a reunificação.
Aí chegou a hora da verdade para Hartmut Topf. O bisneto do fundador da empresa declarara como sua missão de vida investigar a história familiar e documentá-la para as gerações futuras. "Depois da reunificação, saiu no jornal uma notícia de que uma Senhora Topf, do Oeste da Alemanha, solicitava uma restituição em Erfurt", recorda o jornalista de 85 anos.
"Esse foi um sinal para mim. Eu disse: 'Espera aí, então alguma parte do dinheiro, se ele ainda existe, devia ir para a educação política ou para as associações de vítimas'." De início, a municipalidade de Erfurt não se entusiasmou muito com a ideia de erguer um memorial no terreno da fábrica, mas no fim Topf e seus companheiros a levaram a cabo. Desde 2011, no antigo prédio da administração, encontra-se uma mostra permanente que informa sobre a história da companhia.
O legado familiar de Hartmut Topf também lhe trouxe dificuldades na Polônia. Quando, durante uma visita a Auschwitz, dois anos atrás, ele mencionou quem era, um senhor na entrada do memorial de início reagiu com rechaço: "O seu nome não soa bem aqui." "Eu sei", respondeu o jornalista, "é por isso mesmo que vim."
Da série de reportagens Culpa sem expiação, um projeto da redação polonesa da DW com Interia e Wirtualna Polska. dw.com/zbrodniabezkary.
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