Turquia quer separação de sexos nas moradias de universitários solteiros
16 de novembro de 2013Na opinião do primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, universitários solteiros do sexo masculino e feminino não devem morar juntos. "Ninguém sabe o que acontece nesses espaços. Todo tipo de coisa duvidosa pode acontecer. E então os pais reclamam e perguntam onde está o Estado. Na qualidade de governo conservador e democrático, temos que intervir", disse, num encontro de seu Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, na sigla em turco).
De acordo com relatos da mídia, já aconteceram controles policiais em moradias de universitários. O jornal Radikal informou que, no último sábado (09/11), o apartamento de três universitárias na cidade de Manisa foi vasculhado por seis policiais. Elas haviam recebido visitas masculinas.
"Homens e mulheres vivem juntos aqui?", perguntaram os policiais. Cada uma das estudantes teve que pagar multa de cerca de 32 euros por "perturbação da ordem pública". O prefeito de Manisa, Abdurraham Savas, negou que o motivo da batida tenha sido a suposta convivência de homens e mulheres no apartamento.
A declaração de Erdogan provocou mais um amplo debate sobre a intervenção do Estado turco na vida privada dos cidadãos. Kemal Kiliçdaroglu, presidente do Partido Popular Republicano da Turquia (CHP), maior facção oposicionista do país, acusa Erdogan de abusar da democracia. Também o Partido do Movimento Nacionalista (MHP) uniu-se às críticas: "O primeiro-ministro deve, definitivamente, se desculpar perante os estudantes inocentes e suas famílias", declarou o presidente do MHP, Devlet Bahçeli.
Racha na liderança partidária
A polêmica não agita apenas as fileiras da oposição, mas também o próprio AKP, onde há diferenças sobretudo entre Erdogan e seu vice, Bülent Arinc. Este tentou amenizar a declaração do chefe de governo de que tomaria medidas contra os estudantes não casados, alegando tratar-se de um mal-entendido. Mas Erdogan insistiu: "Foi assim que falei, e com essa intenção, mesmo."
Arinc reagiu imediatamente, criticando Erdogan em público, num procedimento sem precedentes na Turquia. E agora foi um passo além: embora seja um dos fundadores do AKP, anunciou não pretender mais se candidatar pelo partido nas eleições futuras. Um pleito municipal está marcado para maio de 2014, no segundo semestre virão eleições presidências, seguidas pelas legislativas em 2015: caso Arinc não se candidate pelo AKP, isso significaria "um racha na liderança partidária", explica o cientista político Cengiz Aktar.
O contexto da desavença, contudo, é mais amplo do que o atual debate sobre separação dos sexos em apartamentos universitários. Quando eclodiram os protestos no Parque Gezi de Istambul, em junho deste ano, Arinc adotou um curso moderado, ao contrário de Erdogan. Enquanto este insultou os manifestantes de "terroristas" e "escória", o vice-premiê pediu desculpas aos manifestantes pela violência policial.
Já na ocasião, manifestaram-se diferenças claras entre os dois homens fortes do partido do governo. Arinc tende para um estilo de governo não autoritário. Erdogan, por sua vez, continua se esforçando para consolidar seu papel no centro do partido e do Estado.
Combate ao terrorismo como pretexto
Na discussão sobre a situação de moradia dos universitários, Erdogan conta com cobertura especial do ministro do Interior, Muammer Güler. Este declarou que seu ministério analisaria a questão enfatizando o aspecto do combate ao terrorismo.
"Nossas investigações mostraram que organizações terroristas se aproveitam das relações entre estudantes do sexo masculino e feminino para receber apoio da juventude colegial e universitária", afirmou Güler ao Hürriyet, um dos maiores jornais turcos. Segundo o político, muitas dessas acomodações seriam esconderijo para suspeitos de terrorismo ou pontos de prostituição.
Para a estudante Aybüke Dündar, de 21 anos, isso não passa de um pretexto. "Não é a primeira vez que os líderes do governo se interessam pela nossa vida privada", comentou à Deutsche Welle. "Nós podemos decidir com quem moramos juntos. Na imaginação de Erdogan, parece que todos os rapazes e moças passam o tempo todo em orgias regadas a álcool. E, mesmo se fosse assim, não é da conta dele", pontificou a estudante.
Interferência na esfera privada
Alguns meses atrás, centenas de milhares de cidadãos protestaram por mais liberdades individuais na Turquia. Segundo os manifestantes, o governo islâmico-conservador encabeçado por Erdogan vem interferindo demais nas vidas privadas.
Na ocasião, a crítica se dirigia principalmente contra a lei que acabara de entrar em vigor, segundo a qual bebidas alcoólicas só podem ser vendidas em lojas, supermercados e quiosques até as 22h. Bebidas tampouco podem ser vendidas num raio de 100 metros de instituições de ensino e locais de culto. Grande parte dos turcos laicos entendeu a nova lei como uma rejeição do álcool, de fundo religioso, por parte do governo islâmico-conservador.
Além disso, com frequência Erdogan tem se manifestado publicamente sobre a imagem da família na Turquia. "As mulheres no país devem dar à luz a pelo menos três crianças. Temos que proteger nossa nação", disse, por exemplo, num discurso televisionado pela NTV, em agosto último em Istambul. Como chefe de governo, ele estaria no seu direito fazer tal exigência, arrematou Erdogan.
Özgür Samlioglu participou das manifestações dos últimos meses. Para o estudante de 23 anos, a atual discussão é um déjà-vu. "Os cidadãos já demonstraram antes sua capacidade de reação, quando o governo os priva das suas liberdades. Erdogan deve deixar em paz a vida privada das pessoas. O que é que ele está pensando?", declarou à Deutsche Welle.
Até o momento, não existe nenhuma base legal para controlar quem ocupa as moradias, observa o cientista político Cengiz Aktar: "Não existe nada do gênero na Constituição turca." Mas isso pode mudar em breve. De acordo com o Hürriyet, o ministro Muammer Güler sugeriu a elaboração de um projeto de lei que coloca as moradias de estudantes sob vigilância policial.