Do 'burocratês' para o alemão
19 de agosto de 2008Há algo que une os burocratas de todo o mundo: sua língua é tortuosa e inextricável para o leigo. E – não conte a ninguém – muitas vezes até mesmo para aqueles que lidam com ela todos os dias: os próprios burocratas.
Quem entende este exemplo genuíno de linguagem jurídica, citado no site www.conjur.com.br?
"Com espia no referido precedente, plenamente afincado, de modo consuetudinário, por entendimento turmário iterativo e remansoso, e com amplo supedâneo na Carta Política, que não preceitua garantia ao cotencioso nem absoluta nem ilimitada, padecendo ao revés dos temperamentos constritores limados pela dicção do legislador infraconstitucional, resulta de meridiana clareza..."
Etc., etc.. Agora acrescentemos as complexidades próprias do idioma alemão, sua possibilidade quase infinita de aglutinar vocábulos, o sistema de declinações, os verbos separáveis e outros requintes, e se tem uma idéia do que sofrem as vítimas do "burocratês" germânico, no oceano nacional de formulários, requerimentos, intimações e indeferimentos.
Escavando a língua
Contudo, como diz o velho provérbio alemão, "contra esse mal brotou uma erva". O Idema (Internetdienst für eine moderne Amtssprache – Serviço de internet para uma linguagem oficial moderna) é um projeto do Instituto de Estudos Germânicos da Universidade do Ruhr, em Bochum.
O princípio é simples, explica a diretora Michaela Blaha. As administrações regionais e outras repartições públicas lhe enviam as cartas e comunicados que mais despertam reações de perplexidade nos cidadãos. Num escritório pequeno e abafado, os lingüistas e juristas de sua equipe se reúnem então para quebrar as cabeças sobre as abominações da linguagem administrativa.
Eles escavam as entranhas do idioma alemão, no esforço de tornar compreensível o "burocratês", examinam, reformulam, simplificam os textos. As sugestões são em seguida discutidas com os órgãos contratantes.
"Isso algumas vezes resulta num longo vai-e-vem. Porém no fim sai um texto que é compreensível, tecnicamente correto e também seguro do ponto de vista jurídico", explica Blaha. Ela resume assim a filosofia do Idema: "Mais curto, mais simples – e a gente entende!".
Pressão do tempo
Na prática, não é nada fácil transformar o alemão dos burocratas em língua de gente. Os filólogos de Bochum registraram que a linguagem oficial alemã possui cerca de 8 mil módulos textuais, e seu trabalho de reformulação apenas se iniciou. Eles freqüentemente esbarram em termos que ninguém – mesmo – entende.
Vejamos alguns exemplos, acompanhados da vã tentativa de traduzi-los:
- Verselbständigkeitsanalyse - análise-da-capacidade-de-assumir-uma-existência-autônoma,
- Ehelichkeitsanfechtungsklage - queixa-com-o-fim-de-impugnar-a-legitimidade-de-um-matrimônio,
- Kostenzusageübernahmeerklärung - declaração-de-confirmação-da-aceitação-de-custos.
Uma funcionária de uma repartição pública de Düsseldorf tenta explicar a gênese de tais monstruosidades. "Eu até que procuro expressar as coisas de forma mais simples. Mas às vezes falta tempo. Quando 15 ou 20 pessoas estão na fila esperando por um requerimento, não dá para escrever assim tão bonito."
"Lugar no País das Idéias"
A iniciativa de Blaha pegou: atualmente 21 municípios de toda a Alemanha, assim como a administração federal, enviam regularmente seus hieróglifos ao Idema. "Muitos ficam ultra-aliviados ao perceber que a carta que despertara tantas perguntas e dúvidas agora fala por si mesma", diz a diretora do projeto.
Dependendo da extensão da tarefa, a equipe cobra entre 500 e 10 mil euros por cada esforço de desmistificação. O Idema mantém, além disso, um banco de dados na internet, no qual os órgãos administrativos podem consultar modelos e módulos de texto "decifrados", e se auxiliar mutuamente.
O serviço dos lingüistas acaba de ser reconhecido como "Lugar no País das Idéias", prêmio de inovação patrocinado pelo presidente da Alemanha. É a primeira vez que o projeto recebe subsídio estatal. E esta vem em boa hora, já que muitos órgãos públicos simplesmente não estão dispostos a gastar dinheiro para ser melhor compreendidos. Típica coisa de burocrata.