"Tivemos que seguir o instinto animal e comer carne humana"
13 de outubro de 2022Roberto Canessa foi um dos 16 sobreviventes do acidente aéreo envolvendo um avião da Força Aérea Uruguaia, que se chocou em 13 de outubro de 1972 contra a Cordilheira dos Andes. Dez dias depois, autoridades não encontraram vestígios da aeronave e cancelaram as buscas. A tragédia deixou 29 mortos.
Na época, Canessa era jogador de rúgbi da equipe uruguaia Old Christians Club e estudante de medicina. Ele e outros atletas seguiam de Montevidéu para Santiago, no Chile, para uma partida contra uma equipe inglesa. Mas nunca chegaram ao destino, já que uma tempestade fez com que a aeronave se chocasse contra as montanhas.
Com pouca comida e remédios, os sobreviventes – que viam seus companheiros morrer dia após dia – tomaram então uma decisão desesperada: comer partes dos cadáveres.
"É um pensamento que se vai construindo, um produto da fome. Era terrível ver que nos corpos de nossos amigos havia gordura e carne", conta Canessa. "É um processo mental em que os manuais da vida civilizada perdem valor, e você tem que seguir seu instinto animal, racionalizá-lo e incorporá-lo."
Cada vez mais fracos, Canessa e seu amigo Fernando Parrado decidiram partir em busca de assistência 62 dias após o acidente. Eles caminharam por dez dias pela cordilheira, sem equipamentos adequados, até que encontraram ajuda.
Há seis anos, o cardiologista publicou o livro Tinha que sobreviver, no qual relata sua experiência. Cinquenta anos depois do acidente aéreo, Canessa – hoje com 69 anos – conversou com a DW sobre a tragédia.
DW: Como o acidente aéreo mudou a sua vida?
Roberto Canessa: Sem dúvida, eu tive uma segunda chance de viver. Eu pensei que ia morrer, porque você certamente morre após um avião colidir contra uma cordilheira. Eu nunca pensei que conseguiria me salvar, e por isso sigo o lema "72 dias, enquanto houver vida e esperança, talvez haja um amanhã", que se tornou o mantra da minha vida.
Como você experimentou a solidão da Cordilheira dos Andes?
Éramos prisioneiros da cordilheira. Tínhamos um pequeno rádio, que nos fazia perceber que o mundo continuava girando. A emissora era chilena, e ouvir as pessoas curtindo a primavera – enquanto estávamos ali, agonizando do outro lado, onde tudo era morte – foi muito deprimente.
Como vocês conseguiram o rádio?
Era um daqueles rádios de pilha que eram usados naquela época – e era de uma das garotas. Tentávamos usá-lo com parcimônia. Percebemos que às 7 da manhã a transmissão era boa e ali ouvimos que o mundo sabia que um avião havia caído na Cordilheira dos Andes. Logo nos demos conta de que estavam nos procurando quando vimos um avião passar por cima de nós, mas ele não nos viu. Com esses métodos de busca, eles não iriam nos encontrar. E tudo começou a ficar muito difuso, mas, ao mesmo tempo, entendemos que a única maneira de nos salvar era por nós mesmos.
O que o manteve vivo?
Para mim, o pior era aquela incerteza gigantesca de, ao mesmo tempo, estar tão perto e tão longe da morte. A poucos metros de mim havia muitos amigos mortos, mas eu estava vivo. Lá fora, o mundo ainda seguia em frente. E compreendemos que, se pudéssemos resistir por tempo suficiente, poderíamos sobreviver. Não podíamos desanimar.
Vocês também tiveram que enfrentar uma avalanche de neve.
Sim, após 19 dias. Mais oito passageiros morreram – e eu vi que a vida sempre pode piorar. Achei que não poderia estar em uma situação pior do que estava, e naquele dia fomos enterrados vivos por uma avalanche.
Em algum momento a comida acabou, e vocês passaram a comer o couro dos cintos, ou beber água-de-colônia, mas perceberam que não era suficiente. Então vocês decidiram se alimentar dos corpos dos mortos. Como conseguiram aceitar tal situação?
É um pensamento que se vai construindo, um produto da fome. Era terrível ver que nos corpos de nossos amigos havia gordura e carne. É um processo mental em que os manuais da vida civilizada perdem valor, e você tem que seguir seu instinto animal, racionalizá-lo e incorporá-lo. Senti uma grande humilhação e uma grande violação dos princípios civilizados. Mas também aceitei que eu não me importaria se fizessem a mesma coisa comigo, nesse contexto. Teria sido uma honra se tivessem me usado.
Após 62 dias, vocês decidiram buscar ajuda e caminharam mais de 70 quilômetros pela neve. Algo aconteceu que os impulsionou a fazer isso?
Após outro amigo morrer, Nando Parrado me disse que provavelmente outros também morreriam nos próximos dias e que ele e eu estaríamos tão fracos que não conseguiríamos sair dali. E então decidimos buscar ajuda. O caminho foi difícil, e quando pensávamos que estávamos no cume de uma montanha, percebíamos que havia outra ainda mais alta. Mas ao menos sabíamos que cada passo significava um a menos para atingir nosso objetivo. E, em algum momento, ao passarmos pela cordilheira, vimos um rio, vegetação e até mesmo um lagarto. Ao vê-lo, senti que estávamos salvos e que não iria morrer na neve como meus amigos. E seguimos nosso caminho até encontrarmos finalmente o tropeiro [chileno] Sergio Catalán [que atravessava com seus animais um trecho inóspito da Cordilheira dos Andes].
O que você sentiu ao vê-lo?
Eu disse a mim mesmo: "Nós conseguimos!". A partir disso, o mundo saberia que havia sobreviventes na cordilheira, que eles haviam se enganado e que fomos considerados incorretamente como mortos. E, o mais importante, que nossos amigos finalmente seriam resgatados.
Cinco décadas se passaram desde o acidente. Quais lições você aprendeu durante esses anos?
Você não pode ficar simplesmente sentado esperando os helicópteros chegarem, mas tem que sair e buscá-los você mesmo, caminhando se necessário. Isso nos ensina como seguir adiante e como alcançar nossos objetivos. E para aqueles que estão passando por um momento difícil: eu sei o que estão passando, eu sei o que é subir uma montanha e ficar desanimado. Mas não desista. Observe tudo o que conquistou na vida e será capaz de alcançar muito mais. As pessoas não têm problemas, elas têm dificuldades. Um problema é quando lhe dizem que tem apenas três meses de vida. Considero um problema você se espatifar [com um avião] contra as cordilheiras. O resto são dificuldades que dão sabor à vida.
Como é sua relação com a morte hoje?
Ela está cada vez mais próxima. No acidente, ela estava muito perto, mas depois se afastou. E agora, quando estou prestes a completar 70 anos, é uma questão de não deixar a velhice tomar conta e não se cansar de ser bom. A chave é aproveitar o momento da vida no qual você está passando.
Você manteve contato com os outros sobreviventes?
Sim, somos muito amigos. Não somos apenas uma comunidade dos sobreviventes, mas também incluímos as famílias daqueles que não conseguiram sair vivos.
Vocês falam sobre o assunto?
Sim, mas com um senso de humor. Para mim, o mais importante depois de voltar da cordilheira foi conseguir rir da própria desgraça e ver como estávamos mal, porque a linha é muito tênue entre o sublime e o ridículo. Temos que rir mais e ser mais felizes.
Há algo do qual você se arrepende?
Claro, eu não deveria ter embarcado naquele avião [risos].