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Taxar grandes fortunas pode ser uma medida antirracista

Ynae Lopes dos Santos
Ynaê Lopes dos Santos
27 de outubro de 2023

Não há país menos desigual sem redistribuição de renda. Não há aplicação de políticas públicas antirracistas efetivas que não pressuponha redistribuição de renda, afirma a colunista.

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Notas de Real
"Esse imposto incidiria sobre uma parcela ínfima da população, menos de 1%"Foto: rafapress/Zoonar/picture alliance

Nesse mês de outubro, comemoramos o 35º aniversário da nossa Constituição que segue em vigor. Promulgada em 1988, a nova Constituição foi festejada de maneira ansiosa por uma parcela expressiva da população brasileira, pois marcava o fim de mais de duas décadas de ditadura militar no Brasil – período no qual uma série de direitos foram sistematicamente violados, e a democracia ficou suspensa.

O desejo pela democracia cidadã organiza diversos pontos da Constituição, numa proposta abertamente progressista (mesmo que a la brasileira). E ali no item sete do artigo 153 que versa sobre os impostos que compete à União instituir está: "grandes fortunas, nos termos de lei complementar".

É isso mesmo, o maior e mais importante contrato social e político do Brasil previa a cobrança de imposto sobre grandes fortunas, por meio da formulação de leis complementares e futuras. Acontece que esse futuro nunca chegou.

Mais de três décadas se passaram e a possível cobrança de impostos sobre grandes fortunas – que existe em diversos países tidos como primeiro mundo, vale dizer – gera uma série de debates acalorados, mas não se efetiva em termos legais e práticos.

O debate recente sobre a reforma tributária trouxe uma vez mais a possibilidade de taxação das grandes fortunas do país – uma grandeza que sequer foi dimensionada, tendo em vista que a compreensão sobre o que seria o recorte inicial dessas grandes fortunas pode variar de um patrimônio de 2 milhões, segundo um Projeto de Lei Complementar (PLP) apresentado em 2008, até mais de 50 milhões, como o previsto em um PLP de 2020.

Mas o fato é que esse imposto incidiria sobre uma parcela ínfima da população, menos de 1%. Existem diferentes propostas de taxação, porém, nas versões que defendem alíquotas progressivas, os cálculos apontam que a arrecadação poderia alcançar até R$ 40 bilhões por ano.

40 bilhões representa quase 25% do orçamento do Ministério da Educação que, segundo o Portal da Transparência, terá em 2023 despesas previstas girando na casa dos 180 bilhões. Imaginem a diferença que esse dinheiro faria se bem aplicado na educação ou na saúde pública brasileira?

Taxação antirracista

Para aqueles que defendem a criação e aplicação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) existe uma argumentação importante de ser pontuada: a frequente improdutividade dessas fortunas. E, aqui vale lembrar: estamos tratando de fortunas de pessoas físicas, não de empresas ou indústrias – uma dimensão que também precisa ser levada em conta frente a argumentos tendenciosos que defendem que, se implementado, o imposto gerará uma "fuga de capitais".

Mas há outra faceta fundamental na defesa da taxação de grandes fortunas: a possibilidade dela ser elaborada e aplicada dentro de uma perspectiva antirracista. Afinal, quem são os multimilionários brasileiros? Salvo raríssimas exceções, são homens brancos que, apesar dos possíveis esforços pessoais e familiares, surfaram nas muitas camadas de privilégio que a população branca usufruiu e segue usufruindo.

É preciso lembrar que durante muito tempo as maiores fortunas do país estiveram diretamente ligadas ao tráfico de africanos escravizados e à escravização dessas pessoas e seus descendentes. A relação é de tal intensidade que dificilmente uma família rica do século 19 não era proprietária de escravizados (geralmente donos de centenas deles). Só que desde meados da década de 1830, grande parte dos africanos escravizados no Brasil estava nessa condição de maneira ilegal, segundo as leis do próprio Brasil. Ou seja, uma parte significativa das fortunas construídas no século 19 foi feita na ilegalidade. E isso parece não ser um problema moral para ninguém, pois quem pagou por essa ilegalidade é quem segue pagando o pato (e também impostos muitas vezes desproporcionais à sua renda): a população negra.

Mesmo que a engrenagem da economia brasileira tenha mudado com a abolição da escravidão (1888) e a proclamação de República (1889), não podemos fugir ao fato de que ser rico segue sendo um privilégio quase que exclusivamente de brancos. E aqui, prefiro me poupar dos discursos meritocráticos que não têm nenhuma densidade analítica.

Não há um país menos desigual sem redistribuição de renda. Não há aplicação de políticas públicas antirracistas efetivas que não pressuponha redistribuição de renda. Que isso não seja perdido de vista.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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Ynaê Lopes dos Santos defende que não há como entender o Brasil e as Américas sem analisar a estrutura racial que edifica essas localidades; e que a educação tem um papel fundamental na luta antirracista.