Sair do Brasil, ficar no Brasil
7 de fevereiro de 2020Fora do país, recebemos as notícias em ciclos que dependem das nossas interações com as telas do telefone e do computador. O Brasil é o pesadelo portátil que pode surgir quando estamos no metrô, no trabalho, no bar, entre drinques, ou num despertar insone – basta deslizar uma tela.
Tirando isso, o Brasil surge quando encontramos outros brasileiros chorando as mesmas pitangas. Qualquer reunião de nativos hoje transforma-se rapidamente num grupo de apoio. Os sobreviventes compartilham o trauma, fazem planos impossíveis, desenham cenários e perguntam-se: quanto tempo isso vai durar?
Na Europa, é raro que "isso" estampe manchetes de jornal ou monitores no transporte público – a última vez de que me lembro foi em julho do ano passado, quando saíram os números do desmatamento na Amazônia.
Para as pessoas ao nosso redor – em Berlim ou em qualquer capital europeia, talvez com a exceção de Lisboa – o país de onde viemos será uma vaga ideia (violenta, exótica ou sensual) sem muita importância coletiva. Pense em ser um indonésio em São Paulo: a indiferença deve ser semelhante.
Ainda assim, navegar pela ausência de traços nacionais no estrangeiro não nos fará menos obcecados pelas (quase sempre más) notícias. Óbvia constatação: sair do Brasil é mais fácil do que fazer com que o Brasil saia de você.
Como estive indo e voltando nos últimos meses, acredito ser pior atravessar esta maré fora do país do que dentro dele. A não ser que você e seu emprego já estejam ameaçados de morte. Ou que você consiga, no exterior, isolar-se por completo da tragédia que castiga a sua terra – e sua família e boa parte de quem você conhece e estima. Caso você não seja esse tipo de sociopata, ter a desgraça repulsiva que é o bolsonarismo como único contato com a realidade brasileira não será nada fácil.
Pois há coisas que as notícias – e os circuitos de indignação sobre elas em redes sociais – são incapazes de transportar para Berlim ou qualquer canto via telefone celular. Uma sociedade civil pujante, capaz de mostrar resistência não só em discursos e articulações políticas, mas em palcos de teatro, festas de rua, escolas de samba, mesas de bar. Entre os nervos expostos das encruzilhadas pouco iluminadas do país, há também potência de vida, terreno fértil para que os brasileiros consigam vencer o Brasil truculento, miliciano e genocida que temos hoje, mais do que nunca, sobre as nossas cabeças.
Você vai dizer que não me reconhece nessas palavras – e, verdade, eu nunca fui um otimista. Eu vou argumentar dizendo que essa sensação de beira do abismo tampouco tem mais lugar: não tem mais aqui ou aí. A Europa está derretendo, e nem vamos falar dos Estados Unidos.
"Nenhuma opção parece confortável", eu respondo quando você me pergunta para onde eu vou. "Porque antes estar em um lugar parecia o suficiente. Estar fora. Mas hoje não há mais longe. Nada é longe. Não há mais fora."
Escrevo isso pelo telefone antes de aterrissar, numa sexta-feira de janeiro, na Casa Porto, no Largo de São Francisco da Prainha. Consigo um lugar perto de um janelão do sobrado, onde bate o ventinho úmido e quente do centro do Rio. Eles vão tocar o samba da Mangueira, eu vou ganhar uma garrafa de batida de maracujá e gengibre do meu amigo Vidal – e a lua cheia vai brilhar, por trás dos cabos elétricos, no sopé do Morro da Conceição.
"Esquece tudo o que eu falei", te respondo, antes de a bateria acabar.
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Escritor e cineasta, J.P. Cuenca é autor de cinco livros traduzidos para oito idiomas. Seu último romance, Descobri que estava morto, foi vencedor do Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional e deu origem ao longa-metragem A morte de J.P. Cuenca, exibido em mais de 15 festivais internacionais. Ele hoje vive entre São Paulo e Berlim. Siga-o no Twitter, Facebook e Instagram como @jpcuenca
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