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Desigualdade e criminalidade

Geraldo Hoffmann26 de novembro de 2006

Projetos nas favelas do Rio de Janeiro e Florianópolis mostram caminhos para diminuir as altas taxas de criminalidade no Brasil. Peritos dizem que a chave para combater a violência é melhorar a distribuição da renda.

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Rocinha: estigmatizada como símbolo de pobreza e criminalidadeFoto: Geraldo Hoffmann

Dois indicadores mostram que o Brasil ainda está longe de resolver dois de seus problemas mais graves – a pobreza e a criminalidade. O primeiro: o nível de pobreza caiu de 28,2% da população em 2003 para 22,77% em 2005, mas ainda atinge 42,5 milhões de pessoas. Para chegar a este número, a Fundação Getúlio Vargas considerou pobre todo brasileiro com renda individual de até R$ 121 por mês.

O segundo problema envolve números estarrecedores. De acordo com o Ministério da Justiça, cerca de 55 mil brasileiros morrem por ano (mais de 150 por dia) vítimas da violência. Isso são alguns milhares a mais do que os mortos da guerra no Iraque, que já dura três anos. Esta estatística assusta ainda mais quando se planeja, por exemplo, uma visita à favela da Rocinha, no Rio de Janeiro.

Gangue do aeroporto

Com um pouco de medo, desembarquei numa madrugada de meados de outubro passado no Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio, Estado com a maior taxa de assassinatos do Brasil. O primeiro choque veio logo na alfândega. "Cuide bem de seu notebook. Existe uma gangue operando aqui dentro. Se você bobear, lhe roubam tudo", advertiu uma funcionária.

Enquanto o táxi cruzava as favelas que cercam a Linha Vermelha, no caminho do aeroporto ao centro, contei a história da gangue do aeroporto ao motorista. "Uma funcionária da alfândega lhe disse isso? Ela está querendo gerar pânico. O Rio não é tão violento assim", tranqüilizou-me.

Luciano Francelli, assistente do Programa de Segurança Humana da ONG Viva Rio, dá razão ao taxista. "Eu sei que moro numa cidade violenta, mas não me privo de fazer o que quero. É claro que tomo as minhas precauções. A insegurança gera desconfiança em relação a tudo e a todos", diz.

Entrega de armas

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Soldado vigia montanha de 10 mil armas confiscadas no RioFoto: AP

O Viva Rio é uma ONG que nasceu em 1993, após uma onda de seqüestros, o massacre de oito meninos junto à Igreja da Candelária e a chacina de 21 pessoas no bairro Vigário Geral. Hoje coordena projetos contra a violência em 350 favelas e comunidades de baixa renda da região metropolitana do Rio de Janeiro, alguns deles financiados pela União Européia (UE).

Por conta destas e outras iniciativas, no ano passado, foram recolhidas e destruídas 500 mil armas que estavam em mãos de civis. Mesmo assim, os dados da criminalidade em 2004 e 2005 mostram que quase 20% dos assassinatos no Brasil ainda acontecem no Estado do Rio de Janeiro. Mas a taxa, que era de 66 mortos por 100 mil habitantes, caiu para 61 por 100 mil habitantes. Em São Paulo, caiu de 23,9 por 100 mil habitantes para 18,9 por 100 mil habitantes.

Num plebiscito realizado em outubro de 2005, quase dois terços dos eleitores brasileiros (63,94%) rejeitaram a proibição do comércio de armas de fogo e munição no Brasil. Apesar disso, a coordenadora de comunicação da Rio Vivo, Mayra Jucá, está convicta de que, "para combater a violência, é preciso combater o porte de armas para civis". Calcula-se que haja 17,5 milhões de armas de fogo em circulação no Brasil, 90% nas mãos da população civil.

Leia mais: Visita a favelas no Rio e Florianópolis

Amigos dos Amigos

Marcos Rangel
Marcos Rangel, morador da Rocinha e guia turístico na favelaFoto: Geraldo Hoffmann

Quando se fala em violência no Rio, logo se pensa nas favelas, especialmente na Rocinha. Marcos Rangel, guia da ONG Exotic Tours, mostrou-me a "sua" Rocinha, onde nasceu e mora há 40 anos. Guiou-me pelo labirinto da maior favela da América Latina, com cerca de 150 mil habitantes. "Tem turista que pensa que aqui todos são bandidos, mas 99,9% são trabalhadores. Aqui dentro posso garantir sua segurança, lá fora não", avisou.

Há muito, a Rocinha virou um bairro operário, com completa infra-estrutura de comércio e serviços. Tem luz elétrica, água encanada, ônibus, mais de 30 escolas, 2200 lojas, seis emissoras de rádio, duas agências bancárias e até um shopping center. Tem também um time de futebol, ao qual está ligada a escolinha Celeiro de Craques. A Escola de Samba da Rocinha, que desfila no carnaval do Rio, oferece aulas de percussão a centenas de adolescentes.

No meio do emaranhado de barracos e casebres de tijolo, Josivan Farias, Edson da Silva e Paulo Mendes trabalham na Estação do Futuro, financiada pela UE. Eles oferecem cursos de informática, serviços eletrônicos e acesso barato à internet. É o principal elo de ligação da Rocinha com a sociedade da informação. "As outras ligações no morro são bastante instáveis", diz Paulo.

Já a Casa da Paz, mais acima, presta serviços públicos à população, como atendimento médico, biblioteca e ajuda para resolver problemas burocráticos. "O Estado está aqui e é influente. Prestamos um serviço neutro, inclusive para pessoas de outros bairros. Até filhos de mafiosos são atendidos", garante o funcionário André Brouck.

O Estado está sempre presente também na entrada da Rocinha, num carro de polícia. "É proibido fotografar a viatura", grita um dos quatro policiais e vem correndo, de arma na mão, para ver se o repórter realmente apaga a foto. Foi o momento de maior perigo durante a visita.

Marcos mostrou ainda alguns becos da favela onde também é proibido fotografar e é melhor nem entrar. São "bocas de fumo", vigiadas por integrantes da máfia Amigos dos Amigos – versão carioca do PCC paulista –, munidos com armas pesadas e equipamentos de comunicação.

Boa vizinhança

Isaura Paulino da Silva
Isaura Paulino vende picolé na praia de São ConradoFoto: Geraldo Hoffmann

A paraibana Isaura Paulino da Silva, 62 anos, moradora na Rocinha há 40 anos, que produz e vende picolé de frutas nas ruas e na vizinha praia de São Conrado, revela o segredo de viver em paz com os traficantes. "Não me meto na vida deles e eles não se metem na minha". Ela nem sonha em abandonar a favela. "Tenho tanto amor à Rocinha, que só saio de lá quando Deus me chamar", diz.

Ela só lamenta que o mais novo de seus oito filhos, todos criados na Rocinha, não tenha ouvido seu conselho. "Ele se meteu com esse pessoal das drogas. Foi embora há 17 anos e nunca mais tive sinal de vida dele".

Isso foi diferente com Daniel Vinicius, 18 anos, um dos 450 alunos da Escola de Música da Rocinha (EMR). Ele conta que, graças aos bons conselhos dos pais e aos cursos oferecidos pela EMR, resistiu às "tentações do tráfico" e hoje sonha em dar o salto da favela à faculdade de música.

O coordenador e professor Gilberto Figueiredo diz que a Escola de Música, financiada com doações da Alemanha, faz um trabalho preventivo para tirar as crianças da rua. "A gente não ganha sempre. Também houve ex-alunos que caíram no tráfico ou na prostituição". No caso de Daniel Vinicius, ele acredita que a escola venceu. "Ele é um talento no violão, que precisamos fomentar".

Investir na juventude

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Groh: 'Há caminhos para tirar jovens da criminalidade'Foto: DW/Geraldo Hoffmann

Projetos como os da Rocinha estão se multiplicando pelo Brasil afora. Na favela de Mont Serrat, em Florianópolis, o padre Vilson Groh coordena uma ONG que tenta criar oportunidades de emprego para os jovens. Somente no ano passado, o projeto Aroeira conseguiu inserir 500 jovens oriundos de favelas no mercado de trabalho local. Outros 400 voltaram à escola. "O número de homicídios em Florianópolis também caiu", conta Groh.

O projeto Aroeira faz parte do chamado Consórcio Social da Juventude, um programa do governo federal destinado a qualificar para mercado de trabalho jovens de baixa renda, entre 16 e 24 anos, em situação de vulnerabilidade social. A meta é criar 60 mil novos empregos até o final de 2006. Durante os cursos, que duram seis meses, o participante recebe um auxílio de R$ 150,00.

"Há caminhos, sim, para tirar os jovens da miséria e da criminalidade, se forem oferecidas oportunidades. O problema é que essa juventude nunca teve uma chance", diz Vilson Groh. "Um jovem no Consórcio Social custa R$ 290,00 por mês; um jovem na cadeia, R$ 1.000,00 por mês ao Estado”, compara Groh.

Um estudo feito há três anos pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) projetou que uma redução de 2% ao ano na desigualdade da renda faria o número de homicídios cair 11,6% de 2001 a 2006 no Estado de São Paulo. Ainda é cedo para um balanço, mas tudo indica que os peritos do Ipea têm razão quando dizem que "só uma redistribuição da renda é capaz de diminuir a criminalidade no Brasil".