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"Quilombolas merecem reparação histórica"

28 de julho de 2023

Brasil tem 1,3 milhão de quilombolas, só 12% em área demarcada, segundo o Censo. Dados inéditos do IBGE devem orientar políticas públicas e ações para homologação de títulos de propriedade, afirma professora da USP.

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Líder comunitário aparece de costas, andando na área do Quilombo Sacopã, na zona sul do Rio de Janeiro
Quilombo Sacopã, na Zona Sul do Rio. A maior parte da população quilombola está no Nordeste (68%); o Sudeste vem na sequência, com 13%Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

"As comunidades estavam fadadas ao esquecimento, mas resistiram", afirma Maria Helena Pereira Toledo Machado, professora titular do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), sobre o Brasil ter 1,3 milhão de quilombolas atualmente. Destes, apenas 12% vivem em área demarcada, e 4,3%, em territórios devidamente titulados. Os dados fazem parte do Censo 2022 e foram divulgados nesta quinta-feira (27/07) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O mapeamento inédito coloca em evidência a situação do grupo que tem sido historicamente invisibilizado pelo poder público. Os primeiros quilombos surgiram ainda em 1570, como forma de resistência contra a violência praticada durante o período colonial. Neste período, estima-se que cerca de 5 milhões de pessoas foram escravizadas durante 300 anos, até 1888, quando foi assinada a Lei Áurea, que determinou o fim da escravidão no país.

A maior parte da população quilombola está no Nordeste (68%), com destaque para Bahia e Maranhão. O Sudeste vem na sequência, com 13%. Cidades como Alcântara (MA), Salvador e Senhor do Bonfim (BA) e Januária (MG) estão entre as que têm maior taxa populacional quilombola.

A pesquisa foi feita com base no autorreconhecimento dos habitantes e teve a colaboração da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq). Vale lembrar que o primeiro Censo geral da população começou a ser realizado ainda em 1872. Até 2022, os quilombolas eram contabilizados nos números gerais de cidadãos brasileiros.

Para a professora Machado, as autoridades brasileiras precisam entender os quilombolas em suas várias dimensões históricas, que incluem não só o vínculo com o período da escravidão, mas também com os ataques sofridos pelo campesinato brasileiro de maneira geral.

"O sujeito quilombola é um camponês sem terra e de origem afro-brasileira, que foi espoliado e não teve acesso à terra devido à escravidão e ao sistema histórico do país. O reconhecimento dessa população que o Censo possibilita é uma forma de reparação, entre outras que precisam acontecer. Esse povo precisa ter a terra que merece."

DW: Qual a importância do levantamento feito pelo Censo com dados dos quilombolas no país?

Maria Helena Pereira Toledo Machado: É um acontecimento histórico, porque a população quilombola sempre esteve à margem para as autoridades. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 68, definiu que o reconhecimento das terras e a entrega de títulos de propriedade deveriam ser feitos apenas para os remanescentes das comunidades quilombolas. Nesse sentido, o que se esperava era o reconhecimento de poucos grupos, visto que a ocupação desses espaços sempre foi fragmentada, dispersa, pelas dificuldades de se instalar. Além disso, essas comunidades, geralmente apartadas, estivessem fadadas ao esquecimento ou à inexistência, porque o caminho natural era a inserção desses agrupamentos ao capitalismo.

Ao longo do tempo, no entanto, houve uma conscientização étnico-racial de propriedade da terra por parte dos negros, em um sentido ampliado do que significa um quilombo e sua disputa com a propriedade privada. E o que aconteceu foi a manutenção dos espaços. Muitos desses quilombos registrados pelo censo não existem desde o período colonial e foram concebidos posteriormente, a partir de doação testamentária de senhores a escravizados alforriados, por exemplo. Mas isso se torna menor diante da importante resistência conquistada.

Atualmente, quase 88% da população quilombola vive em terras não demarcadas, e só 4,3% residem em territórios já titulados no processo de regularização fundiária. O que esses dados explicam?

Essa é a história dos quilombos, porque historicamente foi muito difícil essas comunidades sobreviverem na direção contrária da propriedade privada. São grupos que receberam todo tipo de violência e perseguição. Os quilombos são ocupações camponesas, mas que diferem do que houve na Europa, por exemplo. Lá existiu a figura do camponês que, a partir da revolução francesa, conquista a possibilidade de ser um pequeno proprietário, com produção familiar e controle da terra. Nas Américas não houve esse campesinato, porque o que tivemos aqui foi a escravidão negra e indígena. Ou seja: o camponês latino-americano, especialmente no Brasil, foi em sua maioria o sujeito escravizado fugido, desertor e que esteve sempre invisibilizado.

Quilombolas são impactados em duas perspectivas distintas de desamparo social: a de negros e também de sem terra?

O movimento negro, sobretudo aquele vinculado mais ao campo, sempre utilizou o artigo 68 como uma espécie de reforma agrária dos afrodescendentes. Uma forma de tentar combater uma concentração de terras mesmo havendo terra suficiente para ser distribuída, especialmente no pós-abolição. A questão da terra é básica para o quilombo e essas duas dimensões estão intimamente relacionadas. É mais uma camada para se pensar a história do campesinato brasileiro. O sujeito quilombola é um camponês sem terra e de origem afro-brasileira, que foi espoliado e não teve acesso à terra devido à escravidão e ao sistema histórico do país. O reconhecimento dessa população que o Censo possibilita é uma forma de reparação, entre outras que precisam acontecer. Esse povo precisa ter a terra que merece.

Como o Censo impacta a formulação de políticas públicas para a população quilombola?

A partir do Censo, a população quilombola passa a existir sob uma nova perspectiva, mais visível e representativa do ponto de vista institucional. Embora a gente saiba que algumas organizações mantêm dados sobre o tema, é importante que oficialmente eles façam parte dos dados nacionais. Tenho esperança de que as autoridades possam olhar esse retrato e homologar os pedidos de reconhecimento que estão paralisados.

O que explica o fato de termos 68% da população quilombola vivendo no Nordeste?

Esse é um tema em discussão, mas entendo que ele está relacionado à valorização da terra. Historicamente, Nordeste e Sudeste são as faixas geográficas mais povoadas, mas as terras do Sudeste sofreram um processo de valorização anterior e mais agressivo do que o que se observou no restante do país. Terras que foram ocupadas pela propriedade privada para a produção em larga escala do café, da laranja, de outros tipos de monocultura e também pela propriedade privada. Por isso há uma disputa que acontece desde o século 19, com a modernização das cidades. A construção de uma estrada no litoral paulista é suficiente não só para valorizar a região, como para desmantelar uma comunidade. A valorização das cidades no litoral norte é outro exemplo de como o capital atua nessa relação com os quilombos. Essa disputa também ocorre no Nordeste, mas ela demorou mais para se materializar e isso se reflete na resistência das comunidades.

Quilombos podem ser entendidos como uma forma de resistência ao modelo capitalista de sociedade?

Certamente. Isso não quer dizer que eles sejam anticapitalistas e vivam um comunismo primitivo. Mas são espaços que se regem por leis que estão em constante conflito com a propriedade privada e o capital. São lugares que valorizam uma agricultura familiar e socializada entre as famílias. A propriedade da terra é em divisa e organizada a partir das relações sociais. É uma estrutura diferente. Isso não quer dizer que a produção quilombola não se insira no mercado. Desde o século 19 há registros que mostram a lenha obtida pelos quilombolas sendo comercializada no mercado informal do Rio de Janeiro. E esse produto, posteriormente, entrava no mercado formal. Isso acontece hoje, com parte da produção que se tem. Mas as leis que definem a ocupação da terra são completamente diferentes e a produção não foca o mercado consumidor. É uma outra lógica.

Existe uma dificuldade geral do Estado e da sociedade em entender o que são os quilombos para além de sua atuação na luta contra a escravidão?

É um problema histórico e intimamente relacionado à formação do país, assim como o fascismo que se revelou nos últimos anos. Uma incompreensão de como as comunidades tradicionais – a exemplo dos quilombos, mas não só – podem contribuir para uma sociedade mais equilibrada. Basta olhar a maneira como lidam com a terra, a preservação do meio ambiente e a produção amparada no respeito à natureza. É uma forma de existência com mil lições a oferecer, mas o que as autoridades e também os grandes fazendeiros ignoraram ou coibiram amparados pela violência.