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"Quem me espancou também é vítima", diz professor confundido com ladrão

Marina Estarque, de São Paulo21 de julho de 2014

André Luiz Ribeiro corre dez quilômetros todos os dias, mas perde o fôlego quando conta a sua história. Confundido com ladrão, ele foi acorrentado e só escapou do linchamento porque deu aula sobre Revolução Francesa.

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Foto: Privat

Entre gírias típicas da periferia de São Paulo e frases de filósofos e poetas, André Luiz Ribeiro, de 27 anos, lembra do dia em que quase foi linchado: "25 de junho, por volta das 19h30." O professor de história da rede estadual diz que foi confundido com um ladrão, acorrentado e espancado na rua, em Parelheiros, bairro da periferia de São Paulo.

Durante o espancamento, ouviu alguém dizer: "vai buscar o facão". Antes que o homem voltasse com a arma, porém, bombeiros chegaram ao local e dispersaram a multidão. Os presentes, entretanto, não acreditaram que André era professor e lhe pediram que desse uma aula sobre Revolução Francesa.

Mesmo após as explicações sobre liberté, égalité, fraternité, o professor ainda ficou preso por dois dias, já que o dono do bar roubado o apontou como autor do crime. Na prisão, a pedido dos companheiros de cela, recitou o poema Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos.

"Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que, nesta terra miserável, mora entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera", recitou. "(…) O beijo, amigo, é a véspera do escarro. A mão que afaga é a mesma que apedreja."

Apesar de tudo, André não sentiu a necessidade de ser fera. Só de justiça. Ele diz não ter raiva dos seus agressores. "Eram trabalhadores também, vítimas de uma sociedade que negligencia os pobres. Eles acharam que estavam fazendo o certo."

Gechichte Lehrer André Luiz Ribeiro aus Brasilien
André em sala de aula: "Meus agressores são trabalhadores, vítimas de uma sociedade que negligencia os pobres"Foto: Privat

Já em liberdade provisória, André retomou o trabalho e, no primeiro dia de volta à escola, deu uma aula sobre linchamento. Filho de um metalúrgico e uma dona de casa, ele mora com os pais em Parelheiros e ganha 2.100 reais por mês, para dar 32 horas de aula por semana.

Ainda sob o choque do ocorrido, André evita sair de casa. "Acho que não vai cicatrizar nunca, né, meu? Esse medo das pessoas é uma ferida que fica para sempre."

DW Brasil: Como foi que aconteceu?

André Luiz Ribeiro: Eu saí para correr e, próximo ao Balneário São José, reparei que as pessoas estavam me olhando. Vi um carro vindo em alta velocidade na minha direção. Só não me atropelaram porque eu desviei. Achei que era um roubo e levantei as mãos. Saíram do carro o dono do bar e o seu filho, que começaram a me bater, sem nem me perguntar nada. Chegou mais gente, no mínimo umas 15 pessoas, e me espancaram.

Quanto tempo isso durou?

Não sei bem. O dono do bar me acorrentou com a barriga no chão, com as braços e pernas amarrados nas costas. Depois ele pediu ao filho para ir em casa buscar o facão. Antes de eles voltarem, os bombeiros apareceram e dispersaram a multidão. Logo em seguida chegaram os policiais e mandaram me desacorrentar.

O que a polícia fez depois?

Ficaram me perguntando o que eu estava fazendo ali, mas não acreditavam em mim. Eu estava sem documentos, porque tinha saído para correr perto de casa. Foi quando um bombeiro me pediu para dar uma aula sobre Revolução Francesa. Acho que ele pensou que eu era um vagabundo.

O que você disse sobre a Revolução Francesa?

Falei que começou em 1789, mas tem uma situação caótica anterior que desemboca na Revolução. Eu falei sobre os Jacobinos, Girondinos, sobre o conceito de direita e esquerda... É uma ironia eles me pedirem uma aula de Revolução Francesa, quando se institui para o mundo os direitos do homem, à liberdade e à vida, que foi copiado por muitas constituições.

O fato de te acorrentarem também é muito simbólico...

Com certeza, você acaba com a humanidade da pessoa, trata como um bicho. Já que ele não é humano, a gente pode bater. Do jeito que eles me batiam parecia que eu não era nada. E não me escutavam também.

O que eles falaram depois da aula?

Nada. Eu perguntei: "tá bom, amigo?" Acho que ele me perguntou aquilo para acabar logo com a humilhação, porque eu falava que era professor, mas não acreditavam. Depois disso parece que mudou, via na cara deles que eles sabiam que eu era inocente. Pensei muito também que, se eu fosse negro, estaria morto. Até porque o linchamento institucionalizado começa com os negros, na escravidão.

Por que você acha que isso aconteceu?

Eu sei os perigos que nós temos. Na periferia a gente é desassistido mesmo. Essa é a real. A nossa policia não é para nos proteger, ela é feita para o Estado e os ricos. Para mim, o cara que me bateu também é vítima. Eram trabalhadores também, vítimas de uma sociedade que negligencia os pobres. Ele achou que estava fazendo o certo. Talvez ele já tenha sido roubado diversas vezes e quis acabar com aquilo.

Você tem raiva das pessoas?

Não tenho não. Eu estou muito feliz por estar vivo, porque foi muita pancada. Só quero justiça e provar a minha inocência. Espero que as pessoas vejam o meu caso e não façam mais isso.

Você acabou ficando preso dois dias, como foi?

Mesmo sendo uma delegacia, você pode ficar louco... Tanto que a primeira coisa que eu fiz foi pedir um livro. Foi o "Eu podia estar morto", do Damien Jackson. O título foi uma ironia "monstra". Li quase inteiro, vou procurar para terminar depois.

Ficou em uma cela sozinho?

Sim, a primeira noite sim. Mas nem consegui dormir, tinha medo de morrer mesmo, até porque tomei muita pancada na cabeça. Depois o dono do bar não retirou a queixa, por isso eu fui transferido e fiquei mais um dia preso. Agora estou em liberdade provisória e estou processando eles por tentativa de homicídio.

Como foi a volta ao trabalho?

Eu preparei uma aula sobre os linchamentos. E falei sobre o meu caso com eles, mas foi tranqüilo. Sabe, às vezes eu fico lembrando, não tem como não lembrar... Acho que não vai cicatrizar nunca. Esse medo das pessoas é uma ferida que fica para sempre. Mas eu gosto muito de dar aula, ali parece que estou em outro mundo.

Os alunos te receberam bem?

Eles queriam saber de todos os detalhes. Eu contei tudo, inclusive que fiquei em cela individual, porque eu era formado. Disse que a educação é, no mínimo, um seguro de vida. Perguntaram por que me bateram e eu vi a indignação deles no olhar. É uma escola de periferia, eles têm muito contato com a marginalidade, então já começaram a dizer que iam me vingar. Mas eu não sou do crime, sou professor. Tenho que mostrar o caminho certo para eles.

Como foi a aula sobre linchamento?

Preparei a aula, mas nem deu para falar direito, porque eles perguntaram muito sobre o meu caso. A minha ideia era falar de Foucault e do direito de resistência, do John Locke. Seria uma aula mais filosófica e sociológica, mais para ensino médio e eles estão na sétima e oitava série. Mas eu curto fazer umas loucuras assim com eles...

Por que você escolheu ser professor de História?

Foi um trabalho na oitava série sobre a Segunda Guerra Mundial. Eu fiquei fascinado. Fiquei muito impressionado com o Hitler. Queria entender como um cara mata tanta gente. Hoje eu entendo todos os motivos políticos e econômicos por trás, mas na época eu não entendia.

Você fez História para tentar entender a maldade humana. Isso faz com que você tenha uma visão diferente do que aconteceu com você?

Pode ser. É muita falta de educação também. Porque a Constituição prevê que eles podiam muito bem ter me segurado até a polícia chegar. Não fiz menção de fugir. Se eles soubessem disso, talvez o fizessem. A onda de linchamentos é porque a sociedade está desassistida. Talvez eles pensem que nada vai acontecer com o ladrão. A policia não vem, então eu vou fazer o que eu acho certo. Não sei, não consigo entender. Só gera mais violência e medo.