1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW
HistóriaBrasil

Que Brasil vai receber manto tupinambá?

Ynae Lopes dos Santos
Ynaê Lopes dos Santos
29 de junho de 2023

Diante da devolução de artefato indígena levado à Dinamarca no século 17, torço para que o Brasil faça jus à grandiosidade dessa peça e de todas as histórias que ela carrega.

https://p.dw.com/p/4TCX3
Manto tupinambá, feito de penas vermelhas
Na capital dinamarquesa desde 1689, manto tupinambá é uma das mais bem preservadas peças dessa natureza, dentre 11 remanescentesFoto: Roberto Fortuna/The National Museum of Denmark.

Nesta semana, o Nationalmuseet, o Museu Nacional da Dinamarca, anunciou que devolverá um raro manto tupinambá ao Brasil. Ele está na capital dinamarquesa desde 1689 e é uma das mais bem preservadas peças dessa natureza, dentre 11 remanescentes. Composto de mais de 10 mil penas vermelhas de guará, o manto tem mais de um metro de altura, composto por uma capa e um gorro, e é considerado um artefato sagrado.

Esse manto também está envolto de inúmeras histórias, boa parte delas repletas de violência. Mas, se há algo bonito nisso tudo, é que tais histórias começam e terminam com os tupinambá.

No Brasil de 2023 ainda é importante pontuar que, durante muito tempo, tupinambá foi um termo utilizado para designar a maior parte dos indígenas que viviam nas terras que hoje conhecemos como Brasil. Era assim que os portugueses chamavam as sociedades indígenas que falavam a língua tupi e suas variantes, desde o Pará até a região Sul do país.

No entanto, esse termo não abarcava as complexas identidades dessas milhares de sociedades, que, apesar da proximidade linguística, se entendiam e se denominavam de outras formas. Atualmente, aqueles que se reconhecem como tupinambá vivem em três regiões brasileiras, uma localizada no Pará (no baixo Rio Tapajós), outra na Bahia, e a terceira nos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo.

Para essas sociedades, os mantos eram objetos ritualísticos de grande importância. Confeccionada por meio de sabedoria ancestral, a vestimenta era utilizada em momentos especiais, como no enterro de familiares, assembleias políticas e rituais religiosos específicos.

Manto tupinambá
Manto era considerado sagrado pelos tupinambáFoto: Roberto Fortuna/The National Museum of Denmark.

Contexto de subjugação, usurpação e violência

Não se sabe ao certo como o manto em questão acabou em Copenhague no final do século 17, mas a chegada desse e de outros mantos tupinambá à Europa é prova de uma intensa troca comercial realizada em meio à colonização, um longo e violento processo que, vale lembrar, reordenou as forças políticas, econômicas, sociais e raciais de todo o Ocidente.

Ressalto isso porque, sob algumas perspectivas, a devolução do manto parece ser um ato pio e generoso de uma instituição europeia. Tenho poucas dúvidas de que o investimento e conhecimento tecnológico construído pelas instituições museais da Dinamarca e de outros países europeus foram fundamentais para a preservação dessas e de outras tantas peças indígenas que compõem os acervos de muitos museus do continente.

Mas também sei que a aquisição dessas peças foi feita num contexto de subjugação, usurpação e violência cometidas por algumas nações europeias em nome de seus próprios interesses. No jogo do "se", se não fossem os museus europeus, é provável que esses mantos tivessem se perdido com o tempo; mas, se não fosse a colonização (e a mortandade indígena que ela acarretou em toda a América), esses mantos dificilmente teriam chegado à Europa e teriam cumprido a finalidade pra a qual foram produzidos.

Reparação histórica

Não quero me adentrar na importante discussão da qual a devolução desse manto faz parte. Há um movimento de reparação política e histórica em diferentes partes do mundo, que exigem que instituições europeias reconheçam que seus acervos foram constituídos em meio a projetos e processos imperialistas daquilo que se convencionou chamar de "fardo do homem branco": uma ideia mentirosa que defendia que cabia às nações brancas e/ou europeias salvar a humanidade , e guiar as sociedades não brancas nos signos da civilização  (que também era entendida como sendo branca e europeia).

Esse é um debate bastante polêmico, tanto que as negociações para a devolução do manto aconteceram de forma sigilosa entre as diretorias do Museu Nacional da Dinamarca e do nosso Museu Nacional, no Rio de Janeiro.

Detalhe de manto tupinambá, com penas vermelhas e amarelas
Detalhe do manto, composto de mais de 10 mil penas vermelhas de guaráFoto: Roberto Fortuna/The National Museum of Denmark.

Reconhecimento no Brasil de hoje?

O que considero fundamental pensar é: que Brasil é esse que receberá o manto tupinambá?

Sem dúvida esse processo de devolução evoca sentimentos pátrios. Mas tais sentimentos precisam ser acompanhados por políticas públicas que reconheçam e invistam nas instituições museais do país, para que tragédias como a que acometeu o Museu Nacional em 2019 – que pegou fogo e teve seu prédio e a maior parte de seu acervo destruídos – não se repitam.

E mais: o Brasil que comemora a volta do manto tupinambá está disposto a reconhecer que essa devolução é fruto das ações de lideranças tupinambá, sobretudo daqueles que vivem em Olivença, no sul da Bahia, e que desde os anos 2000 estão lutando para que a peça seja devolvida? Esse mesmo Brasil se lembra da reivindicação de Nivalda Amaral de Jesus, que, em meio à Mostra do Redescobrimento, exigiu que o manto fosse devolvido a seu povo? O Brasil conhece a história, arte e luta de Glicéria Tupinambá, que sem dúvida alguma é uma das pessoas centrais na devolução da peça sagrada? Esse Brasil está mesmo disposto a realizar o reconhecimento e a demarcação das terras indígenas?

Enfim: o Brasil que recebe de volta o manto que foi produzido pelos tupinambá de outrora reconhece os tupinambá de hoje como parte integrante de seus cidadãos e cidadãs?

Torço para que o Brasil faça jus à grandiosidade do manto tupinambá e de todas as histórias que ele carrega.

__________________________________

Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

Pular a seção Mais sobre este assunto
Pular a seção Mais dessa coluna

Mais dessa coluna

Exaustão como estilo de vida

Mostrar mais conteúdo
Pular a seção Sobre esta coluna

Sobre esta coluna

Negros Trópicos

Ynaê Lopes dos Santos defende que não há como entender o Brasil e as Américas sem analisar a estrutura racial que edifica essas localidades; e que a educação tem um papel fundamental na luta antirracista.