Pé na praia: A piedade divina e os frascos de xampu
21 de junho de 2017"Aí tem óleo de acácia de Israel", contou minha entrevistada, "e em cima tem essência de canela. O Rei Salomão usava para as suas noites de amor. Só os casados têm permissão para usar este óleo! Quando um solteiro se aproxima dele, tem feitiço, aí aparece a pomba gira, o espírito de uma prostituta".
Eu estava sentado na sala de uma mulher crente, ela tinha 39 anos de idade. Durante o dia, trabalhava num call center e, de tarde, passava muito tempo na igreja. Frequentava a Catedral Jesus Vive, uma igreja nova, parte do movimento pentecostal. Lá os membros lidam com os ensinamentos da Bíblia de maneira bem diferente, e mais criativa, do que em minha vivência religiosa na Alemanha. Sou católico, oriundo da Renânia. Lá, as igrejas pentecostais e movimentos evangélicos têm pouca força. Sempre senti muita curiosidade a respeito disso aqui no Brasil.
A Catedral Jesus Vive fica num bairro denominado Taquara, bem afastado do centro do Rio de Janeiro. Minha entrevistada mora ao lado da igreja, numa casa decorada. Na sala tinha um aparelho de TV de tela plana com alto-falantes extra potentes. Nela, toda a família assistia à telenovela A terra prometida. Atrás da televisão ficava o armário com os frascos.
"Aqui tem uma essência de mirto bíblico", disse a mulher, enquanto sacudia uma cápsula de plástico. Um cheiro de sabonete se espalhou pelo ar. Ela tinha dez flaconetes cheios de essências coloridas, cada um deles do tamanho de um xampu de hotel. Perguntei o que tinha pago por eles na igreja. "Mil reais", foi a resposta. Achei caro. Muito caro. Mas preferi ficar calado.
Fiquei só pensando: qual é o jeito correto, objetivo, informado, de relatar esse fato para meus leitores na Alemanha? Certo: tem um lado óbvio. No Brasil, muita gente sabe que pastores de igrejas evangélicas ganham muito bem, pedem muito dinheiro ao povo nas suas igrejas, até o ponto da exploração da fé. Fui à loja da Catedral Jesus Vive, vi uma vitrine iluminada e encontrei um monte de coisas. Produtos de cuidados corporais, denominados de alguma forma segundo relatos do Antigo Testamento, coroas de espinho de Jesus Cristo feitas de maneira tosca, todo tipo de lembranças de viagem trazidas de Israel, provavelmente compradas lá por um preço irrisório. Mas em Taquara custavam caro.
E poucos fiéis que moram na redondeza têm dinheiro. De acordo com a estimativa da minha entrevistada, aproximadamente 80% dos fiéis da igreja "ainda não tinham conseguido". Quer dizer: eram pobres. Na área da Catedral há muitas favelas. "No culto se veem jovens que já se prostituíram", disseram-me, "e outros que foram traficantes". Alguém pode se indignar e mencionar a exploração de fiéis por pastores interesseiros, o que eu entendo.
Mas o problema é que essa indignação é, também, fácil demais. Eu cheguei à essa opinião depois de muitas conversas com fiéis e pastores nessas igrejas de periferia, inclusive várias com pastores bem ricos e fiéis bem pobres. Quase sempre tem um cheiro de exploração. Só que a minha entrevistada em Taquara não era nada ingênua (aliás, nas periferias deste país, encontrei pouquíssimas pessoas ingênuas). Então a mulher quer comprar uns frascos de xampu cheios de essência por mil reais? É irracional, economicamente falando, e eu sei, sou economista formado. Mas acho que ela deve ter tido suas razões para isso.
A Catedral Jesus Vive é uma igreja com um salão imenso, sem janelas e de paredes brancas, frequentada por pessoas cheias de entusiasmo – o que também inclui a loja. No culto das sextas-feiras aparecem regularmente mais de mil pessoas, durante a semana ainda podem-se contar algumas centenas. Isso diz alguma coisa.
Também achei interessante o que minha entrevistada disse. Ela me contou muitas histórias de sua fé. Uma vez, os médicos disseram para ela que ela não poderia ter filhos. Mas uma noite, disse, ouviu a voz suave de Deus durante o sono. "Vou te dar um presente", ele sussurrou. "E hoje tenho uma filha de 13 anos que canta maravilhosamente no coro da igreja."
Tudo bem. Eu entendi melhor esse negócio com os flaconetes quando ela começou a contar outras histórias, mais práticas, da sua vida. Quando morreu uma amiga do casal, adotaram a sua filha. Ela disse que a fé, e a igreja, ajudaram muito na decisão. Outra vez, através de contatos na comunidade da igreja, tiveram a oferta de comprar uma casa financiada que precisava de reformas. Foi uma das vantagens de sempre frequentarem a igreja, um grande passo para uma vida pequeno burguesa. Acho justo incluir tudo isso, de alguma forma, no cálculo econômico que fez a mulher comprar os flaconetes bíblicos.
E tenho certeza de que ainda não entendi todos os aspectos. Ao despedir-se, a moradora de Taquara sorriu sabiamente. "Ninguém vive sem sonhos", disse. "A gente pode sonhar com tantas coisas: encontrar um parceiro fiel, subir na carreira profissional, ter um barco, uma casa. Na vida é assim: Deus vive, e ele conhece os sonhos em nosso coração."
Thomas Fischermann é correspondente para o jornal alemão die ZEIT na América do Sul. Em sua coluna "Pé na Praia" faz relatos sobre encontros, acontecimentos e mal-entendidos – no Rio de Janeiro e durante suas viagens. Pode-se segui-lo no Twitter e Instagram: @strandreporter.