Próximos e indiferentes
23 de janeiro de 2003O filósofo francês André Glucksmann, especialista em questões relacionadas à Alemanha, alerta já há um bom tempo para a existência de um "vazio de conteúdos e sentido" nas relações culturais franco-alemãs. Comparando a situação atual com a das últimas décadas, Glucksmann aponta com veemência: "Hoje os dois países se ignoram".
Os números não mentem: o contingente de alunos franceses interessados no aprendizado da língua alemã e o total de escolares alemães que se dedicam ao francês diminui a cada ano. Na França, 90% dos estudantes escolhem o inglês como primeira língua estrangeira. Enquanto o espanhol subiu de 40% para 60% na preferência dos franceses como segundo idioma na escola, o alemão caiu para meros 16%.
"Nos anos 60, aprender alemão era uma tradição. Os melhores alunos escolhiam o idioma, por acreditarem que aprenderiam depois outras línguas com maior facilidade", relembra o filósofo e tradutor francês Marc Sagnol, em entrevista à DW-WORLD. Hoje, "programas de intercâmbio de professores são mero turismo disfarçado de cooperação cultural", denuncia o filósofo Glucksmann.
Ignorância e arrogância –
Outro sintoma da enfermidade das relações franco-alemãs é o decréscimo constante no número de traduções feitas do francês para o alemão, que caiu gradualmente no decorrer da última década. Ao mesmo tempo, a recepção da obra de pensadores contemporâneos franceses em solo alemão é muitas vezes atrelada a um misto de desconhecimento e desprezo. "Ignorância e arrogância andam juntas", observa o professor de Filosofia Bernhard Waldenfels à Revista de Intercâmbio Cultural do Instituto Alemão de Relações Internacionais.Enquanto na época de Kant existia uma abertura ao pensamento francês na Alemanha, esse interesse foi diminuindo pouco a pouco. A recepção da obra de Henri Bergson já não foi tão intensa, e Jean-Paul Sartre foi aceito acima de tudo como escritor e muito pouco como filósofo. Para o francês Sagnol, que vive em Berlim, "hoje não há mais discussões intensas, como a que houve entre Foucault e Habermas no passado. O intercâmbio filosófico diminuiu, mas está longe de desaparecer. Neste contexto, no entanto, não se pode esquecer de Walter Benjamin, cuja obra encontra ressonância cada vez maior na França".
Cinema: americano ou local – Se a literatura já dá sinais de resfriamento, o que não dizer do cinema. O número de filmes franceses vistos na Alemanha é mínimo, ocupando uma fatia em torno de 2% do mercado. Isso para não citar o cinema alemão na França, que não chega a ficar com 1% das exibições. Em todos os países europeus, diga-se de passagem, observa-se a tendência de valorizar a cinematografia nacional ao lado das dominantes produções hollywoodianas.
Instituto Goethe –
Ao coro das vozes céticas em relação às relações franco-alemãs, une-se a do cientista político Alfred Grosser, que vê "instituições como o Instituto Goethe ou a Aliança Francesa perderem gradativamente seu significado". A Universidade Franco-Alemã, criada em 1997 em Saarbrücken, é vista por Grosser como "uma instituição completamente sem sentido, que custa muito dinheiro e não adianta para nada", o que é contestado pela diretora da Universidade, Helene Harth, em entrevista à DW-WORLD. "São quatro mil estudantes, divididos em 114 programas de intercâmbio binacionais, em cooperação com 133 instituições de ensino superior", defende Harth.Mera normalidade? –
Estaria o erro, em suma, na política cultural desenvolvida por Berlim e Paris, sendo o Estado incapaz de convencer a população da importância de manter boas relações com o vizinho? Ou os tempos de lua de mel entre França e Alemanha no pós-guerra deram lugar à normalidade, o que significa cada um a seu canto? Isso é pelo menos o que acredita a diretora Harth: "As relações entre os dois países simplesmente se normalizaram. Alemães e franceses não se tocam mais com luvas de pelica, pois são parceiros em pé de igualdade, o que não impede que possa haver entre eles divergências, como num casamento duradouro", finaliza.Amizade institucionalizada –
Enquanto filósofos, sociólogos e até a ministra alemã da Cultura, Christina Weiss, divagam sobre os problemas e as possíveis soluções para uma crise conjugal entre França e Alemanha, políticos do primeiro escalão derramam-se em Paris e Berlim em séries infindáveis de rituais amistosos. Jacques Chirac e Gerhard Schröder tomaram as rédeas das comemorações dos 40 anos do Tratado do Eliseu, pulando de uma a outra maratona festiva, como se as relações entre os dois países nunca tivessem passado por dias melhores.Promessas voam: cada país garante incentivar o ensino da língua do outro e uma cooperação acadêmica mais estreita é anunciada para breve. Apesar disso, dos sete Institutos Goethe existentes na França até os anos 90, apenas cinco sobreviveram às medidas de economia determinadas por Berlim. Destes, três ainda estão ameaçados de terem suas portas fechadas.
Histórias entrelaçadas –
Uma Europa unificada, no entanto, só terá chances, a longo prazo, se estiver ancorada em um relacionamento intercultural que prime tanto pelo respeito quanto pela curiosidade em relação ao outro. Além disso, a proximidade da trajetória franco-alemã não permite que os dois vizinhos e inimigos de então se ignorem. Afinal, por mais globais que sejam as aldeias de hoje, não há história alemã sem a França e não há história francesa sem a Alemanha.Nesse contexto, há ainda de se ressaltar que se reclama muito "de barriga cheia". Como observa Helmut Schippert, diretor para a Europa Ocidental do Instituto Goethe de Munique, em entrevista à DW-WORLD, "os insiders deveriam deixar com mais freqüência os meandros da perspectiva teuto-francesa. Deve-se saber que aqui se reclama em nível muito alto. Nas ciências humanas, há uma enorme transferência de conhecimento entre os dois países e o interesse por jovens autores teatrais é imenso entre os dois lados. Isso só para citar alguns exemplos", completa Schippert.