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Por que parte da esquerda apoia a guerra de Putin

15 de março de 2022

Para analistas, respaldo à invasão da Ucrânia se baseia no forte antiamericanismo presente na esquerda da América Latina, onde muitos veem no presidente russo uma força para enfraquecer a posição dos EUA no mundo.

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Rosto de Vladimir Putin pintado em um muro
Foto: Darko Vojinovic/AP/dpa/picture alliance

No dia da invasão russa da Ucrânia, em 24 de fevereiro, o ex-presidente boliviano Evo Morales publicou em seu Twitter: "Condenamos o intervencionismo dos Estados Unidos para confrontar dois países como a Rússia e a Ucrânia". Ao longo dos dias, Morales continuou apontando para os EUA, condenando as sanções contra a Rússia como "imposição unilateral e criminal", enquanto acusava Washington e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) de "intervencionismo expansionista".

Enquanto isso, no Brasil, o PT no Senado também culpou os Estados Unidos pela guerra, que se iniciou pela "contínua expansão" da Otan no Leste Europeu. "Os EUA não aceitam uma Rússia forte e uma China que tende a superá-los economicamente."

E em portais "operários", nas mídias da esquerda e nas redes sociais encontram-se inúmeras postagens e textos culpando o "imperialismo dos Estados Unidos" pela guerra e declarando a invasão russa como ação contra uma "Ucrânia nazista liderada por um palhaço".


Para o jornalista Tibério Canuto, são visões de uma esquerda presa na época da Guerra Fria, que se coloca ao lado do presidente russo, Vladimir Putin, por ele ser supostamente "anti-imperialista", ou melhor, antiamericano. Declara-se: "Tudo que se contrapõe aos Estados Unidos nós apoiamos. E tudo que é a favor dos Estados Unidos, nós combatemos." Mesmo se isso significa apoiar regimes antidemocráticos como o de Putin, avalia.

"Uma parte da esquerda tem buscado motivos para dizer que Putin tem suas razões. Aí falam da expansão da Otan e do imperialismo", pontua o especialista em relações internacionais David Magalhães, da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) e Coordenador do Observatório da Extrema Direita.

Em sua avaliação, há uma esquerda mais envelhecida, "para não dizer paleozoica", que não se oxigenou, que mescla nacionalismo com esquerdismo e que vê em Putin uma força para enfraquecer a posição dos Estados Unidos no mundo. "E isso tem suas justificativas, pois sabemos que a América Latina em várias ocasiões foi vítima do imperialismo americano." 

Para essa esquerda, não importa se Putin é um déspota e tem uma agenda reacionária. "Eles criticam e condenam o império americano, e amenizam o império russo, como se a Ucrânia não fosse também vítima do imperialismo russo. Temos vítimas do imperialismo americano na América Latina, e temos vítimas do imperialismo russo, e a Ucrânia e o Leste Europeu sabem o que foi o império russo, desde o czarismo e passando pelo período soviético", diz Magalhães.

Solidariedade esquecida

O Brasil e a América Latina fazem parte da esfera de influência dos Estados Unidos, o que explica essa visão de mundo, avalia o cientista político Oliver Stuenkel, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). "Vemos em outras regiões do mundo que países que estão próximos geograficamente de grandes potências buscam construir laços com outras grandes potências para administrar melhor as relações assimétricas que possuem com seu grande vizinho."

Por isso, a solidariedade deveria, na verdade, ser ao contrário, afirma Stuenkel. "A esquerda deveria se reconhecer na Ucrânia e apoiá-la, pois sabe o que significa viver ao lado de uma grande potência. Mas é exatamente o oposto."

O especialista conta que é difícil muitas vezes transmitir na América Latina que a Otan não anexou os países do Leste Europeu, mas que essas nações têm um medo legítimo da Rússia e por isso desejam aderir à organização. "É difícil imaginar que há outros países que podem agir de forma imperialista."

Cartazes com o rosto de Putin e dizeres: "crime de guerra" e "tire as mãos da Ucrânia" em protesto contra a guerra em Londres
Protesto contra a guerra na Ucrânia em LondresFoto: Vuk Valcic/ZUMAPRESS.com/picture alliance

Segundo Stuenkel, isso ocorre, provavelmente, pela falta de um conhecimento aprofundado sobre o que acontece na Rússia e a situação dos direitos humanos por lá, levando alguns a enxergar Moscou como "pelo menos um que faz frente aos Estados Unidos, um azarão contra os EUA".

Além disso, acrescenta, a esquerda brasileira não traçou um limite claro entre si e a esquerda autoritária, por exemplo da União Soviética, como fizeram os social-democratas da Alemanha na década de 1960 com o Programa de Godesberg – com o qual se distanciaram do marxismo.  Assim, na visão de Stuenkel, a ala esquerda do PT ainda desfrutaria da nostalgia da era soviética.

Teorias conspiratórias

O cientista político também considera preocupante a opinião de parte da esquerda brasileira de que haveria uma ligação entre o movimento democrático na Ucrânia, a primavera árabe e os acontecimentos no Brasil a partir de 2013, com os Estados Unidos envolvidos em todos esses momentos. Da mesma maneira como estariam por trás da Lava Jato, do ex-juiz Sergio Moro e da ascensão de Jair Bolsonaro. Uma guerra híbrida dos EUA para enfraquecer economicamente o Brasil, de acordo com a teoria da conspiração.

"Essa visão de mundo atribui aos EUA potencialmente mais poder do que eles realmente possuem e acredita que os americanos teriam um plano global para derrubar governos no mundo todo", afirma.

Tais teorias são alimentadas no Brasil por meios de comunicação russos, como Sputnik e RT, além da emissora estatal venezuelana TeleSur, que é relativamente influente entre a esquerda brasileira, diz Stuenkel. Essas mídias encontram terreno fértil pois ainda há um trauma histórico na América Latina desencadeado pela influência dos EUA nas últimas décadas. Assim fica fácil a propagação do antiamericanismo.

"Essa é a atratividade de teorias universais. Há uma metateoria que explica tudo o que acontece no mundo sem ser preciso investir esforço para descobrir o que acontece na Ucrânia e quais motivos contribuíram para que os cidadãos do Oriente Médio saíssem às ruas", opina Stuenkel. "É também um pouco de preguiça intelectual: tenho um grande modelo e com ele posso explicar tudo o que ocorre no mundo."

Thomas Milz
Thomas Milz Jornalista e fotógrafo