Polêmica das biografias reaviva fantasma da censura na sociedade brasileira
24 de outubro de 2013De um lado estão alguns dos maiores nomes da MPB: Caetano Veloso, Roberto Carlos, Chico Buarque e outros medalhões, reunidos num grupo autointitulado Procure Saber. Do outro, biógrafos, editores de livros e jornalistas. A "polêmica das biografias" tomou conta da imprensa brasileira nas últimas semanas, gerando um debate sobre liberdade de expressão e direito à privacidade que ganhou uma dimensão raramente vista no país.
Pivô da discussão é o projeto de lei que pretende alterar o artigo 20 do Código Civil de 2002, incluindo um parágrafo que, no caso de pessoas públicas, permite a publicação de imagens e textos com finalidade biográfica sem a autorização do biografado ou de seus familiares. Biógrafos, escritores, editoras e jornalistas saíram em defesa do projeto, argumentando que a autorização prévia hoje existente é um mecanismo de censura e prejudica não somente o conteúdo, mas também a credibilidade de seu trabalho.
"A história é feita por homens e mulheres cujas ações são diretamente afetadas por suas biografias. Sem ampla liberdade de pesquisar e publicar biografias, o trabalho historiográfico e a própria história do país ficam mutilados", afirma o historiador José Murilo de Carvalho, autor de Dom Pedro 2º - Ser ou não ser.
Carvalho foi um dos 48 escritores que assinaram o Manifesto dos intelectuais brasileiros contra a censura às biografias, divulgado em setembro na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Para ele, quem é a favor da liberdade de expressão deve também ser contra a autorização prévia. "O mais desanimador no debate recente é a defesa da censura por parte de artistas que foram vítimas dela durante a ditadura", diz.
O escritor Cristovão Tezza também é da opinião que a autorização prévia limita o trabalho de biógrafos. "A censura nunca saiu completamente do horizonte da cultura brasileira. No jornalismo, é muito frequente uma liminar de juiz proibir notícias sobre políticos importantes. A proibição de biografias é igualmente escandalosa, uma área imensa da informação histórica do país está condenada a ficar na sombra", afirma Tezza, que também assinou o manifesto.
Para o escritor Fernando Morais, um dos mais conhecidos biógrafos brasileiros, a necessidade de autorização prévia prejudica não só as biografias, mas toda a produção de não ficção no país. Em declarações recentes à imprensa, ele afirmou que pararia de escrever biografias depois da publicação de seu livro sobre o ex-presidente Lula. Mas caso ocorra essa mudança na legislação, Morais afirmou à DW Brasil que pode repensar a decisão.
Mas ele lembra que apenas essa alteração no Código Civil não garante a segurança total para o trabalho dos escritores. "Além da aprovação desse projeto, é preciso apurar a Constituição para que ela seja clara com relação a essa ambiguidade entre liberdade de expressão e direito à privacidade", argumenta Morais.
Dois valores fundamentais em choque
Segundos juristas, os argumentos utilizados pelos dois lados estão embasados em dois direitos fundamentais para uma sociedade e os indivíduos que nela vivem. Contudo, o conceito sobre eles é vago na Constituição, permitindo várias interpretações. E justamente isso alimenta a polêmica, dizem.
"O que está em jogo são dois valores fundamentais e igualmente importantes: o direito à privacidade e o direito à informação, informação como um elemento constitutivo da liberdade de expressão. Mas o primeiro tem mais relação com o indivíduo e o segundo, com a sociedade", afirma a professora de ética no jornalismo Virginia Pradelina Fonseca, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Por isso, ao legislar sobre o tema, o Congresso deve discutir qual desses valores é o mais importante para a sociedade. Mas ela deixa sua opinião: "Seria uma lástima se o Congresso restringisse o direito à informação. Uma sociedade democrática e civilizada tem que assegurar a mais ampla liberdade de informação para o público".
Para o professor de direito constitucional João dos Passos Martins Neto, da Universidade Federal de Santa Catarina, não existe certo ou errado nessa questão, mas várias formas de interpretação. Mas também ele considera "problemática" a necessidade de autorização para a publicação de biografias.
"Daqui a pouco qualquer jornalista que vai escrever uma matéria sobre alguém, mesmo uma pessoa pública, precisará de uma autorização. Por que só no caso de biografia e por que não no caso de qualquer texto que vai ser escrito sobre uma pessoa?", argumenta.
"Indústria de venda de autorizações"
Atualmente, o artigo 20 do Código Civil é usado como base para impedir a publicação de biografias. O escritor Ruy Castro teve problemas com as filhas de Garrincha, após a publicação da biografia do jogador sem a autorização prévia. O livro só voltou a circular nas livrarias após o pagamento de uma indenização. Outro caso famoso de proibição foi o da biografia de Roberto Carlos, escrita por Paulo César Araújo, retirada de circulação, após um processo movido pelo biografado.
O projeto, de autoria do deputado Newton Lima (PT), já havia sido aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, mas, após um recurso, o texto deveria ser submetido ao plenário antes de ser encaminhado ao Senado. Prevista para a quarta-feira (23/10), a votação acabou sendo adiada.
"Meu projeto, na prática, estava condenado à morte ou ao arquivamento, e mais uma vez íamos manter esse entulho autoritário, essa censura prévia no Código Civil, contrariando a Constituição", afirma Lima. Segundo o deputado, esse artigo criou uma indústria de venda de autorizações.
Porém, a proposta ganhou notoriedade após os artistas do Procure Saber se posicionarem a favor da autorização prévia para a publicação de biografias, argumentando que ela é necessária para preservar a privacidade dos biografados. As declarações chamaram a atenção da mídia para o grupo. Os integrantes do Procure Saber também defendem que os biografados ou seus familiares tenham participação nos lucros obtidos com as biografias.
Contatados pela DW Brasil, nem os cantores Chico Buarque e Roberto Carlos nem a líder do Procure Saber, Paula Lavigne, mostraram interesse em comentar a polêmica.