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Pierre Boulez: "enfant terrible" faz 90 anos

Augusto Valente26 de março de 2015

Compositor e regente francês é último sobrevivente da geração de Berio, Ligeti, Stockhausen. Da frase "Detonem as casas de ópera!" até hoje, os anos tornaram mais sábio um dos mais lúcidos intelectuais da música.

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Foto: picture-alliance/dpa

"Detonem as casas de ópera" é uma frase que se gosta de citar nos meios da música erudita contemporânea. Ela teria sido supostamente pronunciada pelo compositor e regente francês Pierre Boulez numa entrevista de 1967 sobre o destino desse gênero tão atrelado à tradição, na segunda metade do século 20. No decorrer da conversa, com sua típica verve, o entrevistado arrasa os atuais superintendentes das casas de ópera, alguns diretores de cena e vários de seus colegas músicos.

Nove anos mais tarde, juntamente com o encenador Patrice Chéreau, a mesma pessoa escreveria história, ao reger a tetralogia O Anel do Nibelungo, de Richard Wagner, em Bayreuth – nada menos do que o templo do musikdrama wagneriano. Por sua revolucionária perfeição, essa montagem ficou conhecida como "o Anel do século".

Mais três anos, e a dupla Chéreau-Boulez inaugurava outro capítulo do teatro lírico, ao estrear na Ópera de Paris a tão esperada quanto controvertida versão em três atos de Lulu, composição dodecafônica que o austríaco Alban Berg (1885-1935) deixara incompleta ao morrer.

Assim é a trajetória do hoje nonagenário Pierre Boulez: por um lado, marcada pela lógica e o rigor extremo de um fascinado pela matemática, por um incorruptível senso de proporção e economia – redundando numa cruzada pelo relevante e o verdadeiro na arte, beirando o dogma. Mas, por outro lado, sempre temperada por uma lucidez soberana, um ouvido privilegiado e, sobretudo, um amor à música que paira acima de qualquer ideologia.

Os admiradores do artista descreveriam essa combinação de qualidades como flexibilidade intelectual e capacidade de evolução. Já seus detratores poderiam falar de má definição ideológica, excesso de tolerância, até de oportunismo. A cada um, a sua crença.

De Messiaen à "pátria" alemã

Pierre Boulez nasceu em 26 de março de 1925 em Montbrison, no département do Loire. Tendo começado a estudar piano aos sete anos de idade, ele abandonou o curso superior de Matemática após um ano, para entrar no Conservatório de Paris em 1943.

Entre seus professores destaca-se o compositor Olivier Messiaen (1908-1992), a quem Boulez mais tarde atestaria "espontaneidade criativa, combinada com a pesquisa incessante de novos modos de expressão", em oposição à "total falta de inspiração e ameaça de um academismo esclerosante" que reinava em torno.

Komponist Dirigent Pierre Boulez
Maestro francês tende a se fixar em obras e compositores que considera relevantesFoto: Erich Auerbach/Getty Images

Logo, o jovem Boulez encontrou na Alemanha uma espécie de pátria artística, sobretudo em redutos da vanguarda como o festival de Donaueschingen e os cursos de férias de Darmstadt. Esses locais de concertos e debate eram verdadeiros who's who da música nova europeia, reunindo nomes como Luciano Berio, György Ligeti Bruno Maderna, Luigi Nono, Karlheinz Stockhausen, Iannis Xenakis. Dessa geração, Boulez é o último sobrevivente.

Para além de "Schoenberg ou Stravinsky"

No início da década de 1950, o mundo da composição musical parecia irremediavelmente polarizado entre duas figuras carismáticas. De um lado, Arnold Schoenberg (1874-1951), desenvolvedor do dodecafonismo, método de organização musical baseado na análise combinatória. Do outro, Igor Stravinsky (1882-1971), representante de uma linguagem musical espontânea, muitas vezes baseada em modelos tradicionais, porém parodiados, distorcidos, "modernizados".

Tal sectarismo – aliás simplista e falsificador – se deveu em grande parte à obra Filosofia da nova música de 1947, do alemão Theodor Adorno, com suas duas lapidares partes: "Schoenberg e o progresso" e "Stravinsky e a restauração".

Aqui, Boulez deu uma prova precoce de integridade artística e bom senso crítico: embora de início tenha se posicionado ferozmente na facção dodecafônica – que abrira janelas para o então promissor, e ainda mais cerebral, serialismo integral –, ele em breve reconheceria como tal dicotomia era artificial e, a rigor, inexistente.

A partir daí, passou a perseguir um caminho próprio como compositor, unindo os mundos schoenberguiano e stravinskiano, e muito mais além. De defensor irado do maximalismo musical, ele se transformou num enfant terrible da negação dos rótulos fáceis.

Donaueschinger Musiktage
Por sua revolucionária perfeição, montagem de 1976 de "O Anel do Nibelungo" ficou conhecida como "o Anel do século"Foto: AP

Compositor de poucas obras e muitas revisões

Como compositor, Boulez tem sido um experimentador incessante, explorando combinações inusitadas e meios múltiplos, com destaque para as técnicas eletrônicas de manipulação sonora. A palavra – sobretudo de poetas transgressores, como Stéphane Mallarmé, René Char ou E.E. Cummings – é sua constante fonte de inspiração e desafio.

Entretanto parece uma ironia quase cruel que a produção criativa de um dos mais lúcidos pensadores da música do pós-guerra seja tão esparsa e penosa. Perfeccionista obsessivo, ele escreve, revisa e reformula a mesma obra inúmeras vezes, descarta versões sucessivas, tropeça, paralisa-se, retira obras inteiras de circulação.

Seu catálogo inclui, sem dúvida, criações já icônicas, como Le marteau sans maître (1953-57), Pli selon pli (1957-89) ou Notations para orquestra (1978-97, baseada numa peça de piano de 1945). Mas ainda assim não há como ignorar que sua produção média de 1945 a 2005 vai pouco além de uma obra por ano.

Em compensação, já desde os anos 60 Boulez trilha paralelamente uma intensa carreira de intérprete: de formação autodidata, há décadas ele faz parte do primeiro escalão absoluto entre os maestros.

Ao contrário de muitos de seus colegas, que regem "de tudo", o francês tende a se ater de forma quase obsessiva ao conjunto finito de obras e compositores que considera relevantes. Porém cabe registrar: trata-se de um cânone móvel, o qual – de maneira tipicamente bouleziana – vem se expandindo lentamente ao longo dos anos, sempre desbravando novas fronteiras.

Ópera e dinamite

Tanto haveria para contar sobre esse inquieto senhor de 90 anos que vive hoje na alemã Baden-Baden: seu papel na fundação do Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique (Ircam) de Paris e na Academia do Festival de Lucerna; as colaborações com os coreógrafos Maurice Béjart, Pina Bausch e Bartabas; seu Grammy Lifetime Achievement Award.

Em homenagem ao aniversariante, contudo, bastará desmistificar uma lenda: aos 42 anos, Boulez queria mesmo explodir as casas de ópera? Os fatos são um tanto mais sutis: indagado pelo repórter da revista alemã Der Spiegel se sua ideia de teatro musical moderno poderia se concretizar numa casa de ópera convencional, ele responde:

"Definitivamente, não. [...] Num teatro em que se montam predominantemente peças de repertório, só com enorme dificuldade se podem apresentar óperas modernas – não é digno de confiança. A solução mais cara seria mandar as casas de ópera pelos ares. Mas o senhor não acha também que seria a mais elegante?"