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Pé na Praia: Os segredos do porteiro

Thomas Fischermann
20 de setembro de 2017

Eu sempre quis conversar com um porteiro. Não sabia nada sobre a profissão. Na Alemanha, eles quase não existem. Por isso, logo que me mudei para o Rio de Janeiro, não sabia como lidar com esses homens.

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DW Brasilianisch Kolumne - Autor Thomas Fischermann
Foto: Dario de Dominicis

Quando a polícia chegou, Filipe teve que explicar suas mentiras. Tinha que contar a verdade sobre a mulher morta. "Quando alguém vier e perguntar onde estou, por favor, diga que viajei", a mulher teria pedido quando estava viva. Agora estava ali deitada, morta em seu apartamento, tinha se matado. Filipe é o porteiro de um grande prédio de classe média em Copacabana. Disse para o técnico da NET que a mulher estava viajando, e também para os parentes e os visitantes, por uma semana. "Faz parte do meu trabalho mentir para os moradores, eles me pedem isso com frequência", disse Filipe. Ele só ficou sabendo do suicídio quando os parentes vieram com o delegado e arrombaram a porta. Porém, disse Filipe, ele não teve problemas por causa das mentiras.

Filipe não é o nome verdadeiro do porteiro. O homem de 47 anos é discreto e gostaria de permanecer anônimo. Eu me encontrei com ele em seu local de trabalho, na minha vizinhança. Ele estava sentado em uma cadeira giratória preta, atrás de grades recém-pintadas. Filipe usava uma camiseta bege com o nome do edifício, e como instrumento de trabalho tinha um interruptor para abrir a porta de entrada sem se levantar.

Eu sempre quis conversar com um porteiro. Não sabia de nada sobre a profissão. Em meu país, na Alemanha, eles quase não existem, exceto em prédios de escritórios e em famílias muito ricas. Estacionar o carro na garagem, limpar as escadas de vez em quando, pôr o lixo do lado de fora e retirar a neve da calçada no inverno – tudo isso os alemães fazem eles mesmos.

Então, no começo, logo que me mudei para o Rio de Janeiro, não sabia como lidar com esses homens. Sabia seus nomes e descobri que, quando chegava em casa, eles apertavam um botão para abrir a porta. Tudo bem, também percebi que o porteiro sempre conhecia alguém para fazer os consertos, e sabia passar adiante as queixas dos vizinhos com muito tato: que o cachorro late muito alto, que o fotógrafo do meu jornal Die Zeit sempre anda pelado no telhado à noite, etc. Mas, além disso? O que faz um porteiro no Rio de Janeiro?

"Não existem cursos de formação", explicou Filipe, "a gente aprende no dia a dia". Já exercia esta profissão há 24 anos, e no princípio teria sido um martírio. Um porteiro precisaria decorar todos os nomes de moradores. Também teria que saber distingui-los – as quatro Cristinas, e os cinco Fernandos. Depois disso, aprender quem visita quem: os parentes, as visitas regulares, as visitas irregulares, as prostitutas. Algumas vezes as pessoas ficam agressivas e xingam o porteiro quando, com ou sem razão, têm negada a entrada ao prédio. Durante a conversa, ficou claro que Filipe sabia praticamente tudo sobre os moradores. Suponho que, por outro lado, eles não tenham a mínima noção sobre sua vida.

Filipe sabe que os adolescentes do apartamento do terceiro andar usam drogas de vez em quando. Mesmo assim não conta para os pais. "Digo para eles: não façam isso com suas vidas! Mas também sei que não é da minha conta." Filipe compreende que não deveria contar à mulher do quarto andar que seu marido frequenta o popular Bar Pérola. "Gosta de beber chope, e toda vez diz a sua mulher que saiu para tratar de alguns assuntos." Filipe suspeita que a mulher não acredita nada disso e sabe muito bem para onde ele vai. Só que isso é uma espécie de jogo para todos os participantes.

Filipe estima que atualmente três mulheres casadas do prédio tenham amantes. "Quando seus maridos saem para trabalhar, os homens vêm e dizem alguma coisa do tipo ‘é uma entrega'. Mas sempre são os mesmos homens". É claro que Filipe permanece calado. Entretanto, não pensaria em avisar as esposas infiéis caso o marido voltasse mais cedo.

O maior problema dos dias de hoje, contou Filipe para mim, seria o aumento dos assaltos e da violência. Sempre achei que era para isso que existiam os porteiros – para a segurança. Ou talvez não? "Nós observamos a rua o dia todo", disse Filipe. "Hoje vi um homem puxar o telefone celular da mão de um pedestre bem em frente ao prédio."

Ok, mas não dá para evitar que aconteça isso? Para que servem os porteiros, se na rua os ladrões fazem seus malfeitos? "Não se pode atacar", disse Filipe e balançou a cabeça tristemente. "Somos os primeiros a correr perigo. Aqui já aconteceu de os bandidos falarem comigo: ei, porteiro, eu sei onde você trabalha! Se você falar, já era!" Filipe não tem um botão de alarme em seu local de trabalho. Não poderia fazer muito, nem mesmo em caso de assalto. No máximo ele ligaria para a polícia de seu celular – mas só se nenhum bandido chegasse perto dele e mirasse com um revólver.

"A vida é assim, quando se é um porteiro", disse Felipe, e sorriu novamente. "A parte bonita desta profissão compensa o resto. A gente pode ajudar as pessoas o dia inteiro – e ao fazê-las se entenderem melhor umas com as outras!"

Nesse meio tempo, as pessoas de seu condomínio se tornaram uma comunidade para ele. Há pouco tempo, quando ele havia tomado vinho demais e mesmo assim permaneceu no trabalho, todos entenderam, ninguém reclamou. "Não seria justo, pois quem havia me dado o vinho tinha sido um dos moradores", disse Filipe. "O que fazer quando os moradores convidam a gente para beber?" Já apareceu em algumas festas do prédio, e se estiver muito barulho, ele acalma os outros vizinhos.

"Lá em cima mora uma família alemã", disse, e mostrou um andar onde as luzes estavam acesas. "Eles dão muitas festas lá em cima. Frequentemente tem barulho. Mas eu já expliquei para todo mundo: vocês não podem reclamar com eles, eles são alemães! Faz parte da cultura deles serem barulhentos! E sabe o quê? Até hoje ninguém reclamou."

Thomas Fischermann é correspondente para o jornal alemão Die Zeit na América do Sul. Em sua coluna "Pé na Praia" faz relatos sobre encontros, acontecimentos e mal-entendidos - no Rio de Janeiro e durante suas viagens. Pode-se segui-lo no Twitter e Instagram: @strandreporter.