Pé na praia: A cozinha leve da Dona Brazi
5 de julho de 2017"Quem quiser uma comida leve tem que tomar cuidado com as saúvas", disse Josefa Gonçalves de Andrade, e abriu a tampa de seu freezer. Subiu em um banquinho e ficou se equilibrando na beirada, pescando até o fundo, os braços lá dentro e as pernas balançando no ar do lado de fora.
Josefa, de 68 anos de idade, é uma mulher baixinha, descendente de índios. Seu pai pertencia ao povo baré, e sua mãe, ao povo tucano. Cresceu em uma comunidade de ribeirinhos no alto do Rio Negro. Ninguém poderia imaginar que acabaria se tornando a "Dona Brazi" – uma das cozinheiras mais importantes do país. Foi uma longa história até acontecer. Teve a ver com o freezer de onde ela tirou uma vasilha de plástico. Josefa a segurou triunfantemente no ar. "Saúvas", disse.
Dona Brazi não soube explicar muito bem por que tornou-se tão conhecida no mundo dos chefs. "Foram chegando cada vez mais que queriam conhecer minhas receitas", disse simplesmente. Ela teria cozinhado sua comida para vender na cidade de São Gabriel da Cachoeira. Então foram chegando turistas, depois guias de turismo, depois os chefs famosos.
Há pouco tempo, quando estive em São Gabriel da Cachoeira, me convidei para jantar em sua casa. Enchi meu prato quatro vezes: peixe com molho de tucupi, moqueca de peixe, cozido de peixe apimentado. Ao lado estavam panelinhas com molhos de todas as cores, que se podiam misturar nos pratos e que continham ingredientes fora do comum: pimentas que só crescem na Floresta Amazônica e formigas vindas direto do freezer.
"Muitas pessoas simplesmente jogam as formigas na frigideira junto com os outros ingredientes", disse Dona Brazi, balançando a cabeça, "mas considero isso errado. As formigas devem ser preparadas separadamente, em um molho vinagrete. Sempre digo isso." Quando Dona Brazi fala sobre a cozinha, sua voz segura é tão convincente que ela não deixa nenhuma dúvida. "Sempre soube como se cozinha".
Caso algum leitor ainda não tenha comido formigas: de alguma forma elas tem um gosto parecido com limão, com leves notas de funcho, e deixam um gosto na boca de terra meio podre. Tenho certeza absoluta que não gosto de formigas. Mas isso não tem importância. Parece que gourmets e chefes famosos de todo o mundo gostam de formigas – e como! Dona Brazi foi descoberta por cozinheiros, editoras de livros culinários, empresários. Uma editora publicou um livro com suas receitas. Certa vez em São Paulo teve um encontro de cozinheiros mundiais, entre eles muitos da Europa, dos EUA e da Ásia, e todos eles, em diferentes salões, mostraram como cozinhar algo. "E alguns desses salões estavam quase vazios, mas no meu se apertavam mais de 110 pessoas, pois só cabiam no máximo 100!", contou Dona Brazi.
Ela estava orgulhosa. Levou na época todos os ingredientes congelados dentro de caixas de isopor, inclusive os peixes e formigas e ervas. Desde então Dona Brazi já preparou refeições para convidados de outros estados que se aventuraram pela Floresta Amazônica, a caminho de Manaus ou São Gabriel. "Já cozinhei até mesmo para um rei", disse. Acreditava ter sido o rei da Jordânia, mas não tinha mais certeza disso.
No ano passado foi novamente convidada a ir para São Paulo – ela sempre recusa os convites de cozinheiros internacionais em outros países. "E eles denominaram minha cozinha de ‘cozinha exótica'", disse. Em sua casa sempre cozinharam assim. Aprendeu com sua mãe. O problema é o seguinte: não dá para copiar as receitas da Dona Brazi – mesmo assistindo às demonstrações ou consultando os livros. "O mais importante são os ingredientes", ela mesma explicou.
Mas onde um cozinheiro que não mora na Floresta Amazônica vai conseguir os ingredientes?
Algumas vezes a Dona Brazi enviava formigas e outros ingredientes para seus amigos no mundo inteiro. Um restaurante chique em Manaus gosta muito de trabalhar com ingredientes da floresta, e até mesmo o proprietário de um restaurante na Áustria pediu para enviar formigas para o seu país frio.
"Certa vez fizeram lá um jantar para experimentar os ingredientes", disse Dona Brazi. Seu colega da Áustria contou. E então ela riu. "Também estava presente um fazendeiro entre os convidados do jantar. Ele disse: conheço essas formigas! Em minhas terras, aqui na Áustria, tem muita saúva."
Achei isso difícil de acreditar, mas a Dona Brazi me olhou satisfeita. Parece que o homem pode ficar tranquilo. Não precisa mais pedir para enviar formigas do Amazonas.