Os dois lados do superávit alemão
10 de abril de 2015O superávit comercial da Alemanha – o saldo positivo das exportações em relação às importações – bateu outro recorde em 2014, chegando a cerca de 217 bilhões de euros. Trata-se do maior superávit que o país já registrou.
Há um extenso debate entre economistas e políticos sobre se o enorme e constante superávit comercial da Alemanha é algo um bom ou ruim. Dificilmente esse debate será solucionado, porque, na realidade, o superávit comercial tem aspectos bons e ruins. Vamos olhar para os números e, em seguida, para a controvérsia.
Os números
Um relatório do Departamento Federal de Estatísticas da Alemanha (Destatis), publicado em 23 de março último, aponta que o país exportou 39% de todos os bens e serviços que produziu em 2014. As exportações totais chegaram a 1,133 trilhões de euros, e o produto interno bruto (PIB) foi de 2,903 trilhões de euros.
As importações totais, no entanto, foram de apenas 916,6 bilhões de euros. Ao chegar a 216,9 bilhões de euros, o superávit comercial da Alemanha bateu o recorde anterior, de 195,3 bilhões, em 2007. Expressado como uma percentagem do PIB, o superávit comercial da Alemanha em 2014 foi de 7,5%.
Para efeito de comparação, o superávit comercial da China em 2014 foi de 2,349 trilhões de yuans (cerca de 357 bilhões de euros, no câmbio atual), ou 3,7% do PIB chinês. Em proporção ao PIB, o superávit comercial da Alemanha tem, portanto, o dobro do tamanho do da China.
A controvérsia
Se fulano oferece a beltrano um corte de cabelo por dez euros, e beltrano dá a fulano uma refeição de sete euros em troca, então, no final do dia, beltrano deve três euros a fulano.
As balanças comerciais internacionais funcionam da mesma forma. A Alemanha registra superávits comerciais bilaterais com a maioria de seus parceiros comerciais e tem um substancial superávit no comércio global, se o resto do mundo for considerado uma unidade. Isso significa que, a cada ano, o volume do que o resto do mundo deve à Alemanha aumenta.
A balança comercial entre dois países não é diretamente determinada pela política governamental, mas sim pelas decisões de compra de milhões de empresas e famílias. Em geral, um desequilíbrio comercial bilateral favorecendo a Alemanha não toma a forma de uma dívida entre dois governos; ela assume a forma de dívida privada.
Problemas podem surgir quando um país tem constantes déficits comerciais em relação a outro – como muitos países têm em relação à Alemanha. Dívidas privadas demais podem se acumular, levando, eventualmente, a dificuldades para serem pagas.
Exemplo: Espanha e Alemanha
Em 2014, as empresas alemãs venderam 34,9 bilhões de euros em bens e serviços para clientes na Espanha, mas as empresas espanholas venderam apenas 25 bilhões de euros em bens e serviços para a Alemanha. Isso fez com que os espanhóis devessem aos alemães, no final de 2014, um total de 9,9 bilhões de euros. A Espanha tem tido há muitos anos déficits comerciais em relação à Alemanha, fazendo com que os alemães acumulassem um amplo saldo comercial com a Espanha.
Do ponto de vista das empresas e das famílias alemãs envolvidas no comércio com a Espanha, o superávit comercial assume a forma, inicialmente, de um aumento da poupança financeira. Há três coisas que os alemães que detêm essas economias podem fazer com elas: gastar com consumo, gastar com investimento empresarial nacional, ou gastar em investimentos estrangeiros – comprando ações de empresas na França ou terras na Espanha, por exemplo.
A Alemanha é uma nação de poupadores, em que muitas pessoas reservam algum dinheiro todos os meses. Algumas dessas economias são investidas no mercado interno, e outras, em ativos estrangeiros. À medida que os alemães canalizam seus excessos de poupança em investimentos em países estrangeiros com os quais a Alemanha tem um superávit comercial, isso fornece a esses países os meios financeiros para compensar sua dívida líquida com a Alemanha.
Dessa forma, por exemplo, a dívida líquida que a Espanha tem em relação à Alemanha através do déficit comercial espanhol é parcialmente compensada quando alemães compram imóveis na Espanha – como muitos fizeram. Mas, em termos financeiros, os investimentos estrangeiros não funcionaram particularmente bem para os investidores alemães.
"Ao longo dos anos, os alemães investiram muito de seus ganhos excedentes na compra de ativos estrangeiros", afirma Heike Jöbges, economista da Escola Superior de Economia e Direito de Berlim. "Em geral, esses investimentos perderam dinheiro", diz o especialista, que estuda os desequilíbrios comerciais e os fluxos de investimento alemães.
Por causa de depreciações cambiais, assim como perdas em ativos de papel, como pacotes de empréstimos hipotecários de alto risco americanos, na esteira da crise financeira de 2008, o valor da carteira de ativos alemães corresponde agora a apenas dois terços do que os compradores originalmente pagaram por eles.
E se a Alemanha investisse mais no mercado interno?
De acordo com Jöbges, investidores alemães teriam feito melhor se tivessem investido suas economias no mercado interno. Isso ajudaria a aumentar o emprego, a renda, a demanda agregada dentro da Alemanha, incluindo a demanda por importações de seus parceiros comerciais europeus.
O aumento do nível de investimento doméstico também tenderia a aumentar ainda mais a capacidade da Alemanha de produzir de forma eficiente grandes quantidades de bens e serviços.
Vantagem monetária
Alguns economistas apontam o euro como uma das principais razões para os constantes superávits comerciais da Alemanha. Ao compartilhar o euro com uma grande quantidade de economias, em sua maioria, menos competitivas, os exportadores alemães têm um benefício embutido: uma moeda que é permanentemente mais fraca do que deveria ser. Isso dá uma vantagem artificial aos exportadores alemães.
No entanto, essa tese ignora o fato de que, se a Alemanha ainda tivesse sua própria moeda e seu próprio banco central, esse banco central teria sempre a opção de usar seu balanço para comprar grandes quantidades de moeda estrangeira, inundando o mercado com marcos alemães, até a taxa de câmbio cair o suficiente para não representar mais barreira para os exportadores alemães.
Se o excedente comercial duradouro da Alemanha for considerado um problema, não está claro se ou como uma solução pode ser encontrada. Por ora, a Alemanha provavelmente continuará registrando superávits comerciais, ao menos até que concorrentes de outros países descubram como superar empresas alemãs na produção de carros de alta qualidade, máquinas e bens industriais.