No princípio, era a palavra
14 de setembro de 2008DW-TV: Há cerca de dois anos, você recebeu a notícia de que seria vencedor do Prêmio Nobel da Literatura. Ao olhar para trás, diria que sua vida mudou?
Orhan Pamuk: Quando o meu agente me contou sobre o Prêmio Nobel, o meu primeiro impulso, forte e instintivo, foi dizer a ele que isso não mudaria a minha vida. Agora eu vejo que estava sendo otimista. O prêmio mudou a minha vida – mas não mudou meus hábitos de trabalho. Eu ainda me dedico a uma disciplina rígida, que envolve acordar cedo, escrever, ter um cronograma e por aí vai.
Mas, sim, o prêmio mudou a minha vida: tornou-me mais famoso, me trouxe muitos leitores novos e tornou as coisas um pouco mais difíceis e mais políticas – ele tornou tudo o que eu faço mais político do que eu esperava.
Há três anos, em Frankfurt, você deu um discurso ao receber o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão em que falou sobre as relações entre a Europa e a Turquia. Disse que a Turquia sonha com a Europa, e a Europa não pode se definir sem a Turquia. Ainda é da mesma opinião?
Infelizmente, as negociações entre a Europa e a Turquia deram uma desacelerada nos últimos dois anos. Talvez isso seja por causa da ala de extrema-direita, do establishment e do Exército, que estão bloqueando o caminho da Turquia para a União Européia. E também há a resistência das nações européias: os mais conservadores na França e na Alemanha resistem, como todos nós sabemos, à entrada da Turquia como membro pleno da UE. Portanto, a questão é problemática, e as perspectivas não são tão ensolaradas quanto há dois anos.
Acredito fortemente que a Turquia será, mais cedo ou mais tarde, parte integral da Europa. Mas no momento a situação não parece tão boa, e isto me preocupa. Mas não me faz chorar, porque, essencialmente, sou um escritor de ficção – e, se um dia eu chorar, vai ser porque estou preocupado com a beleza do meu livro.
A despeito da beleza dos seus livros, você, assim como outros escritores da Turquia, tem sofrido muita intimidação por parte de grupos ultranacionalistas ou ultra-religiosos. Isso tem efeitos sobre a sua vida e sobre a vida intelectual na Turquia no momento?
Sim, claro, tem efeitos sobre a minha vida. Vivo com guarda-costas praticamente o tempo todo, o que não é nada bom. Eu tenho que ter essa preocupação. Por outro lado, a ala de extrema-direita, e às vezes alguns jornais estabelecidos, continuam me atacando e fazendo campanhas contra mim, o que também me preocupa.
Eu ensino na Universidade de Columbia um semestre por ano. Agora que meus livros estão sendo publicados, eu também gosto de ir a conferências. Então tenho passado metade do meu tempo fora da Turquia, ou mais da metade, infelizmente – ou felizmente, sei lá. Foi assim nos últimos dois anos. Isso se deve em parte ao Prêmio Nobel, pois a minha fama cresceu muito.
Mas então eu voltei para cá: foi em Istambul que testemunhei a humanidade, eu sei o que é a humanidade em Istambul. Não consigo imaginar uma vida sem Istambul – seja com guarda-costas no meio da noite, ou estando sozinho, tanto faz – o que importa é que eu esteja nas ruas de Istambul, observando e aproveitando. As minhas histórias vão continuar falando sobre o mundo através de Istambul.
Parece que você está tentando encontrar um equilíbrio na sua vida entre viver em Istambul e viajar, entre ser uma figura política e ser um artista... É isso?
Sim, tenho que fazer isso. Mas não sou um exilado. Quando tentam me rotular de exilado, digo que não, não sou um exilado, eu saio da Turquia por conta própria. Se quisesse, poderia viver aqui 365 dias por ano.
Mas viver em Nova York durante alguns semestres é bom, e viajar também é bom. Não quero me fazer de vítima. Talvez porque eu venha de uma cultura que nunca foi colonizada, nunca foi vitimada. Não gosto de me representar como vítima – nem de poderes internacionais, nem de um Estado turco. Estou de pé, feliz, vivendo, tendo prazer em escrever livros e por aí vai. É assim que eu olho para a minha vida.
E você não quer construir pontes?
Construir pontes é um clichê imposto sobre mim só porque sou turco, e, claro, a primeira coisa que todo mundo diz sobre a Turquia é que ela está entre o Oriente e o Ocidente. Mas, antes de ser uma ponte, você tem que entender a humanidade da cultura, suas sombras, pontos escuros, visões insensatas, suas esperanças para o futuro, seus momentos cotidianos, suas fraquezas, sua miséria.
Meu papel é enxergar isso, antes de declarar que "sou uma ponte" ou coisa parecida. Esse tipo de agenda ou representação política – eu não tenho isso. Sou essencialmente um ser literário, que escreve histórias. Sim, meus livros também têm um lado filosófico. Sou um ensaísta, faço julgamentos sobre culturas, política. Mas em primeiro lugar sou um contador de histórias, e principalmente de histórias sobre pessoas.
E agora você está trazendo uma nova história para a Feira do Livro de Frankfurt de 2008, chamada O Museu da Inocência. É um livro sobre o amor, uma bela história de amor, sobre Istambul, claro, e também sobre museus. Acho que é o primeiro romance da história da literatura a ter seu próprio museu...?
Sim, O Museu da Inocência conta a história de amor de Kemal, uma pessoa da classe alta, uma pessoa ocasionalmente descrita como high-society. Ele tem 30 anos em 1975 e conta sobre sua paixão por uma parente distante – uma prima afastada, Fusun, que trabalha como vendedora numa loja e é lindíssima. Para compensar pelo fracasso em conquistar sua mão, ele coleciona tudo em que Fusun toca, e no fim faz um museu com os objetos que estão associados à sua história.
Meu "museu da inocência" é também um museu real, que procura reunir todos esses objetos. Eu venho colecionando coisas para esse museu há quase seis anos. Há dez anos, comprei uma casa, que na verdade é onde parte da história acontece, e transformei-a num museu. Então o "museu da inocência" é tanto um museu quanto um livro.
A apreciação do livro e a apreciação do "museu" são duas coisas completamente diferentes. O museu não é uma ilustração do livro, e o livro não é uma explicação do museu. Talvez eles sejam duas representações de uma mesma história.
E quando formos ao museu, poderemos reviver a história simplesmente vendo e tocando as pequenas coisas que aparecem no livro. É como uma memória vivida. E no fim seu herói diz que todos devem saber que ele viveu uma vida feliz. Você está vivendo uma vida feliz, Orhan Pamuk?
Estou vivendo uma vida muito feliz. Estou me dirigindo a leitores em 58 línguas, a milhões de leitores. Estou escrevendo meus livros do coração, sobre o que eu quero, e eles estão lendo. "Pode haver uma vida mais feliz?", eu pensava, quando tinha 25 anos e decidi largar a pintura para me tornar um escritor.
Às vezes eu penso que todas as minhas fantasias sobre fama e sucesso – que é mais do que eu esperava – foram satisfeitas. Devo confessar que sou um autor feliz.