O discurso da chanceler federal alemã, Angela Merkel, na Universidade de Harvard veio em hora oportuna. Ele lhe permitiu escapar, ainda que por apenas algumas horas, o tumulto político da Alemanha, desencadeado pelo mau desempenho, nas recentes eleições para o Parlamento Europeu, dos partidos da coalizão governamental que ela lidera.
Mais importante é ter lhe dado a oportunidade de falar nos Estados Unidos num momento crítico da relação transatlântica, profundamente tensa desde que Donald Trump assumiu a presidência. O fato de ela falar em Boston – na principal universidade do país, com laços estreitos e históricos com a Alemanha, e não na capital Washington – deixou-lhe mais espaço retórico para se expressar de modo pessoal.
Foi bem-vindo o fato de a estada de Merkel em Boston não estar problematizada por um encontro com o presidente americano, o que teria alterado a natureza de toda a viagem e obscurecido o discurso dela em Harvard. E, como pode atestar quem quer que tenha observado seus dois encontros anteriores na Casa Branca, eles forneceram poucos resultados políticos tangíveis e não alteraram a dinâmica entre os dois líderes.
Dito isso, mesmo sem um encontro bilateral com Trump no itinerário, e sem mencioná-lo diretamente em suas observações, era claro que o presidente estava na mente de Merkel e seu público. Até porque algumas das falas mais aplaudidas foram seus apelos, debilmente velados, para que se resista ao republicano e a sua política de "America first": "Mais do que nunca, nossas ações têm que ser mais multilaterais do que unilaterais." "Não chamem mentiras de verdade, e verdade de mentiras." "Derrubem os muros da ignorância e intransigência."
Essas rejeições expressas do trumpismo foram alguns dos trechos mais fortes do discurso, juntamente com os momentos em que ela abriu uma pequena janela para sua vida pessoal: "Todo dia eu tinha que voltar as costas para a liberdade no último minuto". Assim Merkel se descreveu, vividamente, como uma jovem vivendo em Berlim Oriental, andando ao longo do Muro de Berlim, mas sem jamais poder passar para o outro lado.
Os trechos pessoais da democrata-cristã e seus apelos a que se rejeite o trumpismo foram importantes e de natureza afirmativa, expressando nitidamente um sentimento partilhado com sua plateia. Porém ainda mais interessante foi o que a chefe de governo não disse.
Embora louvando a parceria transatlântica baseada em valores, que beneficiou ambos os lados por mais de 70 anos, ela não prometeu nem predisse que essa relação se manterá por mais sete décadas. A aliança transatlântica de defesa Otan, por exemplo, rotineiramente atacada por Trump, não esteve em suas observações.
O fato de Merkel não ter oferecido uma promessa a plenos pulmões de que lutará pela parceria transatlântica, num local como a Universidade de Harvard, é revelador, podendo servir como um indicador de ela estar convencida que o tema-chave de seu discurso - "Nada permanece igual" - também se aplica a essa parceria.
Igualmente reveladoras foram suas tocantes afirmações de que é possível resolver os desafios globais, como a mudança climática, a erradicação da fome e a eliminação das doenças. Sua retórica de "Wir können das alles schaffen" (Podemos fazer tudo isso) não só ecoou o antecessor democrata de Trump, Barack Obama, como também as palavras dela própria, quatro anos atrás, ao expressar a convicção de que a Alemanha era capaz de lidar com o afluxo de um grande número de refugiados.
Contudo, para além da afirmativa de que esses grandes problemas podem ser resolvidos, Merkel não propôs um roteiro de como se possa se alcançar isso.
Talvez seja demais esperar que um discurso de formatura forneça esse tipo de orientação. Mas, mesmo assim, chamou a atenção que, apesar da temática global do discurso, a única promessa política concreta da líder foi de âmbito nacional: fazer tudo o que seja humanamente possível para assegurar que a Alemanha alcance a neutralidade climática até 2050.
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