Opinião: Donald Trump e os mundos paralelos dos EUA
2 de agosto de 2016O jornal Washington Post fala de um "abalo"; o New York Times, de uma "crise extrema"; também emissoras de TV liberais, como a MSNBC, até a CNN, só têm um assunto: como Donald Trump ousou atacar um casal como Khizr e Ghazala Khan, que perdeu o filho numa operação de guerra no Iraque.
O total desrespeito e falta de empatia do candidato republicano à presidência dos Estados Unidos neste caso é fora do comum, mesmo para os próprios parâmetros dele. Talvez porque, com seu ataque, o casal muçulmano tenha acertado em cheio.
Eles haviam atacado Trump diretamente, durante a convenção do Partido Democrata. Acusado a ele, que tem repetidamente exigido a interdição de ingresso no país para muçulmanos, de nada ter sacrificado pelos Estados Unidos – ao contrário deles e de todas as famílias muçulmanas e demais imigrantes, que prestaram o maior sacrifício possível: a vida do próprio filho.
A reação de Trump confirma quão suscetível ele é, quão irrefletidas e descontroladas são as suas reações quando se sente acuado. Desta vez seus tweets foram longe demais, inclusive para muitos caciques republicanos.
A lista da elite partidária que se colocou explicitamente do lado dos Khan e, portanto, contra Trump, vai desde o presidente da Câmara dos Representantes, Paul Ryan, até o candidato presidencial do Partido Republicano em 2012, John McCain, passando pelo ex-governador da Flórida Jeb Bush. O presidente Barack Obama tampouco deixou escapar esta chance de criticar o adversário com rigor máximo.
Isso já é alguma coisa. Sobretudo em seguida a um fim de semana em que Trump demonstrou não apenas falta de tato, mas também absoluta falta de noção no campo da política externa. Numa entrevista televisiva disse, literalmente: "Putin não vai entrar na Ucrânia, certo? Só para que vocês entendam: ele não vai entrar na Ucrânia, OK?" – apesar da invasão da Crimeia. Chega a ser constrangedor.
O resultado é confusão no establishment: as gafes de Trump desencadearam entre a liderança republicana mais uma onda de conscientização quanto a quem eles estão deixando navegar sob a própria bandeira.
Só que presumivelmente tudo isso em pouco alterará a enorme aprovação com que ele conta entre seus adeptos. Simplesmente porque uma ampla parcela da população nem fica sabendo dos vexames do bilionário.
O panorama midiático dos EUA é estritamente segmentado: no setor de TV, há a emissora Fox News – muito de direita, que praticamente nada noticia sobre a família Khan – e o resto; no rádio, a muito liberal NPR e o resto. Os jornais estão em processo de extinção, e as grandes instituições liberais, como o New York Times ou o Washington Post, acabam só alcançando a elite culta do país, entre a qual haverá muitos poucos simpatizantes de Donald Trump.
E os usuários do Facebook, Twitter e outras redes sociais acabam mesmo só se movendo sempre dentro de seu microcosmos autosselecionado, no qual as próprias opiniões, medos e esperanças não são questionados, mas apenas multiplicados num infinito eco de autorreferências Num mundo midiático tão díspar, não existe mais lugar para um exame crítico das próprias convicções.
Neste ano de eleições, ficará amargamente claro nos EUA em que redunda o fato de um país se transformar em mera coleção de mundos paralelos. Não há mais plataformas comuns de debate público e de confrontação política, onde o interesse esteja em soluções, e não em escandalizar.