Opinião: Começando com o pé esquerdo
5 de agosto de 2016O presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), Thomas Bach, aperta um pouco olhos e focaliza o olhar. Sua expressão fica séria. A questão parece desafiá-lo seriamente: acabo de lhe perguntar se ele ainda era capaz de olhar nos olhos os atletas decepcionados com a decisão dele.
Usando de um subterfúgio, ele acabou por permitir que quase toda a equipe russa participe destes Jogos Olímpicos. Pouco antes, declarara na coletiva de imprensa ter decidido essa "delicada questão" segundo o princípio: "Eu preciso depois conseguir olhar os atletas nos olhos."
Bach toma fôlego e responde que é capaz disso, sim, "porque tenho a consciência limpa", e evoca o "amplo respaldo das associações" – sem mencionar que há também ampla oposição, no esporte e na sociedade, contra o curso adotado por ele.
Está claro: o presidente do COI considera encerrado o debate sobre a questão russa. Mas aí ele se engana.
Pois o fato de que 271 competidores e competidoras da Rússia acabarão participando da Rio 2016 é um tapa na cara para os atletas limpos, e eles não esquecerão tão facilmente essa falta. Primeiro as reportagens da mídia e as declarações dos insiders, mais tarde um relatório abrangente da Agência Mundial Antidoping provaram que os esportistas russos são sistemática e consistentemente dopados.
E aqui não se trata apenas de "casos isolados", como o COI costuma alegar, mas sim de uma verdadeira avalanche de fraudes. Contudo ela não basta para a exclusão da equipe, acha Thomas Bach, segundo o qual foi aplicado "um sistema de justiça". Uma tese ousada, pois a decisão do COI de liberar de fato o grosso dos olímpicos russo desmascara o combate ao doping como mero show.
Justo seria punir as transgressões sistemáticas. Justo seria proteger os atletas limpos contra os fraudulentos. E justo seria também o mundo do esporte deixar decisões cruciais como esta nas mãos de instâncias independentes, como a Agência Mundial Antidoping.
Nada disso ocorreu. E assim todo o movimento olímpico se encontra numa crise de credibilidade, antes mesmo de os Jogos terem começado: um mau começo histórico.
E esse não é o único problema destas Olimpíadas: está também ainda faltando o grande entusiasmo. Nestes dias, o Rio de Janeiro é a mesma caótica e carinhosa metrópole de sempre, mas longe da euforia esportiva de Londres em 2012. Indagados, os cidadãos cariocas se mostram, antes, céticos de que a candidatura para os Jogos tenha sido uma boa ideia.
Segundo uma pesquisa de opinião do jornal O Estado de S. Paulo, 60% dos brasileiros acham que os Jogos Olímpicos, com seu custo de 10,5 bilhões de euros, são basicamente negativos para o país – e isso com o conhecido amor do Brasil pelos esportes. Tais números deveriam alarmar o COI.
Mas Bach ignora. Ele fala de uma crise em que o país se encontra, isso sim; mas nada que tenha a ver com as Olimpíadas. Um engano, pois os protestos dos últimos dias nas ruas do Rio e vizinhanças também se dirigiram contra os Jogos.
Eles são um símbolo: os estudantes e professores que protestavam contra a má situação do ensino se opuseram à chegada da Tocha Olímpica no Maracanã, da mesma forma que cidadãos desapropriados e sindicalistas. O protesto, tanto irado quanto decepcionado, contra a corrupta elite política do país já se mistura àquele "contra todo tipo de catástrofes olímpicas" – como dizia um slogan na Praia de Copacabana, por estes dias.
O Brasil está realmente em crise, e os Jogos Olímpicos precisam prestar atenção para não serem arrastados junto.
No entanto, ainda há esperança. Pois – diferente da corrida de 100 metros, em que o primeiro começo em falso já acarreta desqualificação – após o começo com o pé esquerdo destes Jogos ainda há uma segunda chance para os organizadores: basta as competições se iniciarem que a população vai se entusiasmar, é a esperança difundida.
Tal esperança não é sem fundamento, pois assim já foi diversas vezes, no passado. Entretanto os promotores das Olimpíadas não devem contar com isso e já pensar sobre reformas dos Jogos para além da Agenda 2020 de Thomas Bach. Se eles demorarem demais a deixar seus blocos de partida, pode ser que os problemas os alcancem bem depressa.