Opinião: Venezuela, voto e violência
31 de julho de 2017Em dezembro de 2015, quando o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) venezuelano nada mais podia fazer para adiar as eleições legislativas, a maior aliança de partidos oposicionistas, a Mesa da Unidade Democrática (MUD), arrebatou do governo a maioria dos assentos no Parlamento. Não porque a legenda governante, o Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV), não tenha se esmerado em tentar impedir isso, mas sim porque o triunfo do antichavismo foi grande demais para que o CNE o desvirtuasse com suas habituais artimanhas.
Meses depois, a MUD ponderou vários mecanismos pacíficos e legais para retirar Nicolás Maduro da chefia do governo. Já era evidente, àquela altura, a falta de disposição do presidente para evitar que o país se convertesse em um Estado falido e seu empenho em destruir o pouco que seu antecessor, Hugo Chávez, havia deixado de institucionalidade democrática. Um desses mecanismos foi a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Mas a coalizão de oposição preferiu convocar um referendo simbólico para pôr fim ao mandato de Maduro.
Apesar dos obstáculos colocados pelos poderes públicos, aparelhados pelo PSUV, a organização do referendo ia de vento em popa – até que o CNE suspendeu o processo de forma arbitrária. Também as eleições regionais, que deveriam ser realizadas no mais tardar no final de 2016, terminaram sendo adiadas indefinidamente pela máxima autoridade eleitoral. Maduro e os demais representantes do PSUV ficariam em desvantagem em votações limpas, justas, universais, diretas e secretas. E os indicados por Maduro no CNE sabem que cairiam com ele se as urnas realmente tivessem a permissão de falar.
Por isso, quando Maduro pediu fósforos para queimar as naus – forçando a eleição de uma Assembleia Nacional Constituinte sem perguntar ao soberano se ele a queria – foi o CNE que os colocou em suas mãos. Encabeçada por Tibisay Lucena, foi também essa instância que permitiu ao "homem forte" de Caracas impor, desde o início, condições enviesadas com o objetivo de impedir que a oposição obtivesse a maioria dos 545 assentos da Assembleia Nacional Constituinte. Os adversários de Maduro recusaram o convite de competir pelas cadeiras, mas não sem desafiar o CNE.
Após uma consulta de 16 de julho organizada pelo Parlamento, segundo a qual mais de 7,5 milhões de cidadãos eram contrários à convocação de Maduro, Lucena mudou as regras do jogo horas antes das eleições para garantir que – por convicção ou sob coação – nada menos que 7,5 milhões de pessoas apoiassem a Assembleia Nacional Constituinte nas urnas: o CNE deu aos eleitores o direito de votar em qualquer local do município onde estivessem registrados, e abriu o caminho para mais um vício eleitoral. Para começar, ele restringiu o trabalho de apuração da imprensa.
Tentando viabilizar o projeto constituinte de Maduro em um tempo recorde de dois meses e assegurar a hegemonia do PSUV, o CNE já havia sacrificado as avaliações do sistema de votação e de lista eleitoral, entre outras fases de preparação para o processo, e havia apelado para um descarado gerrymandering (método de definir em termos de área os distritos eleitorais de um território para obter vantagens no número de representantes políticos). Na última hora, com o abrandamento de outros controles, se propiciou a proliferação de votos múltiplos e usurpações de identidade. Buscou-se com coerções o apoio dos funcionários públicos e dos portadores do "carnê da pátria" – uma espécie de cartão eletrônico destinado a controlar a transferência de benefícios sociais.
Tudo isso explica por que Lucena, presidente do CNE, figura entre os membros do governo chavista que tiveram sanções impostas pelo Departamento do Tesouro dos EUA sob a acusação de minar a democracia; por que países vizinhos e remotos pediram ao "que mais manda" em Caracas que suspendesse uma eleição rejeitada pela maioria de seus compatriotas; por que continua havendo quem arrisque sua integridade física para protestar contra a violação da Carta Magna e o desmantelamento do Estado de Direito na Venezuela; e por que Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Espanha, EUA, Reino Unido, México e Peru se negaram previamente a reconhecer os resultados das eleições deste 30 de julho; e por que tanto Alemanha quanto União Europeia se uniram a esse coro. Lucena assegura que 41,53% dos eleitores registrados participaram da eleição da Assembleia Nacional Constituinte. Mas, mesmo se fosse assim, quem acreditaria nele?