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O que sobrou de Freud?

Soraia Vilela22 de março de 2006

Por ocasião dos 150 anos do nascimento de Freud, o mundo prepara uma verdadeira arqueologia de seu saber. Dos mal-estares detectados na civilização às infindáveis interpretações do sonho, seu nome continua presente.

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Sigmund Freud, em abril de 1931Foto: AP

De A a Z, da Áustria ao Vietnã, a partir das mais diversas referências e fazendo uso de um sem número de associações. Organizados por instituições públicas, institutos de psicanálise, editoras, museus ou festivais.

Do fórum de debate conduzido pela Universidade de Pequim à semana freudiana de cinema em Budapeste. Da produção do Manifesto Freud por cinco artistas egípcias a uma mostra fotográfica em Nova York sobre o contexto cultural do fin de siècle em Viena.

Ou seja, o que sobrou de Freud, 150 anos após seu nascimento – em 6 de maio de 1856 – e mais de 60 anos depois de sua morte? Muito, há de se convir. Pois não há praticamente um campo das Ciências Humanas que permaneça incólume às suas teorias, desde o "olhar inconsciente" da análise cinematográfica até os elogios a seu estilo literário, como o registrado há pouco pela austríaca Elfriede Jelinek, ao afirmar que Freud foi um dos "escritores mais significativos do idioma alemão".

O divã no divã

Sua posição como "pensador do século 20" por excelência, apesar das inúmeras revisões e "correções" das últimas décadas, parece incontestável. O que pode ser percebido na recente polêmica em torno do Livro Negro da Psicanálise (Le Livre Noir de la Psychanalyse, Éditions des Arènes, Org. Catherine Meyer), atacado por seus críticos como sendo uma tentativa de domesticar a prática psicanalítica e como forma barata de se opor ao pensamento sociopolítico e, por isso, incômodo de Freud.

Prova de que a herança freudiana pode ser considerada peça de museu, mas jamais é vista como um arquivo morto. No "livro negro" em questão, a teoria psicanalítica é responsabilizada por "danos irreparáveis" e "milhares de vítimas" em função de posições relacionadas ao autismo, homossexualismo e dependência de drogas. Ou seja, Freud pode ser atacado por muitos, mas quase nunca é ignorado. Muito pelo contrário.

Viena: relação ambígua

O tão polêmico volume teve mais de 20 mil exemplares vendidos na França em poucas semanas e foi amplamente discutido no país. Ao contrário do ocorrido na Áustria, o país onde Freud viveu por mais de 70 anos, tendo sido obrigado a fugir durante o regime nazista.

"Isso acontece talvez em função de um cuidado exagerado, pois Freud é lembrado no país como um subcapítulo do Holocausto", observa a jornalista Julieta Rudich, em texto publicado pelo diário espanhol El País.

Em Viena, a cidade onde ele passou praticamente toda a vida, estão programados, por ocasião dos 150 anos de seu nascimento, ciclos de debate, leituras, festivais de cinema e outros eventos culturais que remetem ao pensador. Mesmo que a cidade não possua, até hoje, uma cadeira de Psicanálise em seus cursos universitários.

"Labirinto de segredos"

Daniel Libeskind, Jüdisches Museum Berlin
Museu Judaico de BerlimFoto: AP

Em Berlim, que um dia queimou seus livros em praça pública, o Museu Judaico inaugura em abril próximo a mostra PSICanálise (PSYCHOanalyse), que divide a vida de Freud em diversas "estações" e conduz o visitante, através de um labirinto interativo, pelos conceitos básicos de suas teorias.

O divã ocupa aqui um lugar especial. Uma instalação composta por cenas compiladas nos mais de cem anos de história do cinema tenta passar "um pouco da fascinação e dos segredos em torno da psicanálise", prometem os curadores.

Importância cultural

A essência do legado de Freud fica, porém, longe do divã. É possível que o próprio, se estivesse vivo, apontasse falhas nas teorias que desenvolveu. "Ele não via na terapia sua grande obra, mas na importância cultural da psicanálise", observa o psicólogo Wolfgang Mertens ao semanário alemão Die Zeit.

Neste contexto, é interessante notar que na França mais de 60% dos psicoterapeutas ainda se apóiam na psicanálise, enquanto na Alemanha apenas 10% dos unviersitários que concluíram a graduação em Psicologia, nos últimos três anos, optaram pela formação psicanalítica.

Pontos de interseção

Mas é certamente nos pontos de interseção da psicanálise com a literatura, a filosofia, o cinema, a sociologia, a antropologia e outros saberes que se torna nítida a necessidade de lembrar Freud.

O que talvez explique por que seu nome – com ou sem "livros negros" – continua ocupando um "lugar de honra" na França de Jacques Lacan. O país onde, afinal, grande parte dos pensadores contemporâneos – de Foucault a Deleuze e Derrida – se apoiaram no saber freudiano. Mesmo que para, às vezes, desconstruí-lo.

Continue lendo: neopositivistas; Mann, Döblin, Musil e Zweig; ferramenta civilizatória, o mal-estar que persiste.

"Neopositivistas"

As correntes que pretendem hoje apagar qualquer rastro utilizável do pensamento freudiano são vistas por seus críticos como representantes de uma onda de "neopositivismo" – marionetes de um retrocesso político, que se opõe a tudo o que questiona e leva, de alguma forma, à afirmação do sujeito como tal.

Ignorando que o discurso psicanalítico, independente de qualquer validade clínica terapêutica, continua sendo uma das importantes formas de pensar a cultura e refletir sobre a história.

Mann, Döblin, Musil, Zweig

BdT: Thomas Mann
Thomas Mann: psicanálise como 'ferramenta que esclarece'Foto: AP

Um rápido olhar pelo que marcou a literatura e as artes plásticas no século 20 já elimina, porém, qualquer tentativa de desqualificar o legado deixado por Freud.

Descoberto pelos surrealistas – que se alimentaram livremente do inconsciente – suas teorias impulsionaram a produção de escritores como Thomas Mann, Alfred Döblin ou Robert Musil, entre muitos, muitos outros. Alguns defendem que não há praticamente nenhum autor significativo no decorrer do século 20 que tenha ignorado as teorias de Freud.

Ferramenta civilizatória

A literatura moderna teria tido certamente outro rosto sem a influência do pensamento freudiano. E a forma de se posicionar frente aos problemas de identidade do sujeito teria tido outros contornos, sem os fundamentos criados pela psicanálise e a referência plural que esta se tornou.

Thomas Mann, por exemplo, via a psicanálise como uma ferramenta de esclarecimento e civilização. "O fato de Stefan Zweig ter discursado à beira da cova de Freud mostra o grau pessoal da relação entre literatura e psicanálise", escreve Thomas Anz na revista Literaturkritik.

O mal-estar que persiste

Edward Said
Edward Said: Freud como 'remapeador de geografias e genealogias'

Last but not least, a atualidade do pensamento de Freud está na pertinência em se falar do mal-estar que persiste não apenas na civilização ocidental. Como observa Elisabeth von Thadden, em texto publicado pelo semanário Die Zeit:

"A frase de Freud de que o ego não (das Ich) não seria o senhor em sua própria casa não se tornou lendária à toa. E assim não é por acaso que este Freud dá à época o presente que esta merece: uma técnica sutil de observação, que deve contribuir para reunir o disperso e libertar o homem da auto-ilusão. Tornando sua própria história mais plausível e fazendo com que ele se torne mais forte".

Para evitar que as teorias de Freud venham lentamente a se esmaecer, são bem-vindas as comemorações que lembram os 150 anos de seu nascimento. Afinal, como assinala o pensador palestino-americano Edward W. Said no ensaio Freud e os não-europeus (Boitempo Editorial):

"Freud, no sentido filosófico, foi um inversor e remapeador de geografias e genealogias aceitas ou estabelecidas. Ele assim se presta de maneira especial a releituras em contextos diferentes, já que seu trabalho é, todo ele, sobre como a história da vida se presta, pela memória, pesquisa e reflexão, a uma estruturação e reestruturação sem fim, tanto no sentido individual como coletivo".