O presidente-fantasma que paira sobre a Argélia
7 de março de 2019A Argélia está vivendo uma Primavera Árabe defasada? Os protestos atuais, os maiores no país desde a série de revoluções históricas em países árabes que chegaram a derrubar três presidentes de mandatos longevos em nações vizinhas, indicam que sim.
Na época da Primavera Árabe, ocorrida entre 2010 e 2012, as manifestações realizadas na Argélia promoveram poucas mudanças no país. Em 2012, quando o presidente Abdelaziz Bouteflika se dirigiu à população pela última vez, a Argélia recebia lucros sem precedentes devido ao alto preço do barril de petróleo (cerca de cem dólares).
"Isso permitiu ao presidente 'comprar' alguma paz social e conter as consequências econômicas negativas da Primavera Árabe", avalia Youcef Bouandel, em artigo publicado pela Al Jazeera.
Agora, assim como ocorreu nos vizinhos Tunísia e Líbia, no Egito e na Síria, a ira das massas na Argélia se dirige sobretudo contra o chefe de Estado, que tem 82 anos. Bouteflika governa o país de 40 milhões de habitantes desde 1999 e deverá concorrer ao quinto mandato seguido nas eleições marcadas para o próximo dia 18 de abril.
Porém, ao contrário de Zine el-Abidine Ben Ali, da Tunísia, ou Hosni Mubarak , do Egito, que deixaram o poder devido à Primavera Árabe em 2011, Bouteflika não é necessariamente um homem odiado. Especialmente argelinos mais idosos apreciam seu papel na guerra de independência contra a França, e sua chegada posterior ao poder, após o fim de uma guerra civil durante a qual se estima que até 200 mil pessoas morreram. Bouteflika é visto com o mérito de ter trabalhado para estabilizar o país após o conflito brutal. Entre outras medidas, ele ofereceu uma anistia a antigas guerrilhas islamistas.
A raiva dos manifestantes predominantemente jovens que tomaram as ruas de Argel e de muitas outras cidades nas últimas semanas se direciona contra as condições sob as quais a Argélia vem estagnando há décadas.
Muitos jovens não conseguem encontrar empregos, enquanto a corrupção é galopante. Pouquíssimos se beneficiam das riquezas em recursos naturais do país, e quase não há movimentos políticos. Num país em que metade da população tem menos de 30 anos, a falta de perspectivas, especialmente para os jovens, é uma potencial e perigosa fonte de conflito.
Presidente ausente
O que não está claro é se e até que ponto Bouteflika ainda tem alguma influência sobre a situação na Argélia. Desde 2012, jovens argelinos apenas receberam anúncios presidenciais em forma de mensagens lidas por âncoras noticiosos.
Um dos exemplos mais recentes aconteceu no último domingo (03/03), quando um jornalista de TV informou que Bouteflika concorrerá à reeleição. A notícia, aparentemente, foi anunciada por meio de uma carta de autoria do debilitado presidente.
Segundo o documento, depois de reeleito, Bouteflika quer iniciar reformas imediatas que levarão a novas eleições e à sua própria saída da política. "Escutei e ouvi os clamores dos corações dos manifestantes", disse o presidente, segundo o texto.
Mas não há provas de que ele próprio realmente tenha escrito essas palavras. A única experiência que 40 milhões de argelinos têm em relação ao seu presidente é a de um fantasma.
Bouteflika está numa cadeira de rodas desde que sofreu um AVC (acidente vascular cerebral) em 2013. Com preocupações crescentes, nos últimos anos, sobre se a saúde debilitada de Bouteflika lhe permite tomar decisões e agir de forma independente, os detalhes sobre a saúde do presidente argelino vêm sendo tratados como segredo de Estado.
Recentemente, o embaixador argelino na França foi até obrigado a desmentir rumores de que Bouteflika tinha morrido. E, confrontado sobre o assunto pelo departamento árabe da DW, um integrante do alto escalão do seu partido, a Frente de Libertação Nacional (FLN), não conseguiu responder de forma plausível sobre se foi o presidente que de fato escreveu sua carta pública direcionada à população da Argélia.
Observadores concordam que, atualmente, a figura de Bouteflika apenas representa um compromisso entre as forças que, por muito tempo, determinaram o destino do país: uma complexa rede de poderes de bastidor, que inclui oligarcas e líderes militares, além de líderes políticos de vários partidos.
Os argelinos chamam essa rede de "le pouvoir" ("o poder", em francês). Diz-se que o irmão de Bouteflika, Said, faz parte do círculo mais estreito, assim como Ahmed Gaid Salah, chefe do Estado-Maior do Exército Nacional Popular da Argélia, e o empresário Ali Haddad.
Por muitos anos, essas figuras em segundo plano não conseguiram entrar em acordo sobre a sucessão de Bouteflika. Agora, a situação pode sair de seu controle, assim como seus privilégios políticos e econômicos. Eles precisam se reposicionar.
Na última quinta-feira, Salah, numa sombria alusão à guerra civil dos anos 1990, alertou que algumas forças querem levar a Argélia de volta à "era da dor extrema". Mas, segundo ele, o Exército não permitiria o colapso da segurança – algo que, certamente, pode ser visto como ameaça.
Todos os cenários – de uma revolta bem-sucedida contra o regime a uma reconfiguração de agentes nos bastidores do poder ou até um golpe militar – são concebíveis, mas poucos prometem estabilidade. A Argélia enfrenta tempos turbulentos.
No entanto, diferentemente do que aconteceu com o ex-presidente tunisiano Ben Ali, Bouteflika não terá de fugir do país de avião se manifestantes acabarem com sua carreira política: ele já está fora do país há semanas. Enquanto os argelinos se opõem à sua última candidatura ao governo, o presidente está em Genebra, oficialmente para um "check-up médico de rotina".
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