"O islã está em processo de transformação"
13 de agosto de 2017Em entrevista à DW, o estudioso de assuntos do islã Abdullahi Ahmed An-Na'im defende uma reforma muçulmana a partir de valores próprios. "Voltando 1.400 anos atrás, quando os muçulmanos tiveram o seu primeiro Estado em Medina, ele não era nem islâmico nem religioso."
"Imitando modelos europeus, permanecemos colonizados mesmo que não haja tais controles de instituições estatais", disse o acadêmico nascido no Sudão, professor na Faculdade de Direito na Universidade Emory em Atlanta, nos EUA. "É por isso que é importante elaborar o que queremos dizer com reforma islâmica. Deixem os muçulmanos tomarem as suas próprias decisões."
DW: Sharia em um Estado secular – não se trata de uma contradição?
Abdullahi Ahmed An-Na'im: A pergunta é – o que se entende por sharia? As pessoas tendem a pensar na finalidade legal como se fosse todo o princípio da sharia. Mas a lei islâmica consiste de todo um sistema normativo do islã baseado no Alcorão, "sunna" (costumes) e "hadith" (ditos), ou na tradição do profeta. Não é possível – mesmo num Estado secular – negar aos muçulmanos o direito de consultar a sharia por respostas sobre como rezar ou jejuar.
A sharia não pode ser imposta pelo Estado. Não há absolutamente nenhuma possibilidade de promulgá-la como uma lei estatal, não importa se seja num chamado "país de maioria muçulmana" ou com uma pequena parcela populacional de fé islâmica. A natureza da sharia desafia a codificação. Ela gira em torno da interpretação que as pessoas escolhem por meio de sua própria convicção.
O que é a sharia para você?
A sharia oferece orientação moral para fiéis muçulmanos. Deveria haver uma separação clara entre Estado e religião. Como muçulmano, preciso do Estado para ser secular de forma que eu possa praticar o islã por convicção e escolha. A necessidade de secularização do Estado provém de um ponto de vista islâmico; não tem nada a ver com o Iluminismo europeu. O Estado não tem nenhuma relação com o fato de eu ser crente ou ateu.
Se Estado e religião devem ser separados claramente, que papel a fé pode exercer no discurso público?
Faço uma distinção entre Estado e política. A noção de Estado não tem nada a ver com o islã, mas a política é um campo onde a religião é sempre relevante, não é possível separá-las. Assim como a União Democrática Cristã (CDU) na Alemanha acredita que sua plataforma política é inspirada pelo cristianismo, os fiéis – independentemente de sua religião – agem politicamente a partir de sua convicção como crentes.
Não importa se você separa a sharia da política, os muçulmanos continuarão a agir de forma congruente com sua compreensão da lei islâmica. Não se pode impedir essa possibilidade, a menos que se privem os muçulmanos de seus direitos.
Por que você diz que isso não tem nada a ver com o Iluminismo e com o conceito ocidental de secularidade?
Voltando 1.400 anos atrás, quando os muçulmanos tiveram o seu primeiro Estado em Medina, ele não era nem islâmico nem religioso. Esse Estado era uma instituição política, ele não era descrito nem por sua população nem por seus inimigos como sendo um Estado islâmico. Tal forma estatal é um conceito pós-colonialista que combina a ideia europeia de Estado nacional com a ideia da autodeterminação muçulmana em termos de identidade islâmica. Não podemos realmente nos queixar de que tudo que está acontecendo no mundo é devido ao Iluminismo ou à ideia europeia de secularidade.
Em outras palavras, a secularidade tem muitas faces?
O que se encaixa como Estado secular na Alemanha não é aceito da mesma forma na França. O Estado alemão não se qualificaria como secular pelos padrões franceses. O Reino Unido, onde a rainha é líder da Igreja da Inglaterra, não poderia ser aceito como Estado secular mesmo segundo os padrões alemães. E todos concordariam que a Alemanha, o Reino Unido e a França são Estados laicos.
Que essa forma de Estado tenha surgido a partir do Iluminismo é uma enorme simplificação, que não é assegurada nem pela própria história europeia. Mas a ideia de Estado nacional é europeia e foi imposta em regiões colonizadas do mundo onde vivem muçulmanos, na África e na Ásia. Quando os muçulmanos saíram do domínio colonial, essa era a forma de Estado com a qual tinham de viver. Eles não o escolheram, e esse tipo de Estado não era endógeno nem à sua cultura nem aos seus valores. Ele foi imposto arbitrariamente pelas potências europeias, e podem-se ver as consequências trágicas disso hoje na Síria e no Iraque.
É devido ao colonialismo que o islã é religião estatal na maioria dos países árabes?
Não, claro que não. Mas o que significa quando o islã é a religião oficial? E por falar nisso, também há muitos Estados não muçulmanos, como a Irlanda, onde se tem uma religião de Estado. A ideia de que a identidade religiosa é fundamental para as pessoas é absolutamente compreensível e comum na experiência humana, mas não tem consequências legais. Mauritânia, Paquistão e Irã dizem que o islã é a religião do Estado. Estamos sugerindo que isso que significa a mesma coisa?
Isso significa que não há nenhuma separação entre o estatal e o religioso.
O Artigo 2° da Constituição egípcia indica que o islã é a religião oficial. Mas não há nenhuma referência a esse artigo no resto da Constituição. Então, ele é insignificante, uma propaganda, uma forma de legitimar o Estado. Desde um golpe militar que derrubou a Irmandade Muçulmana egípcia, o país tem sido governado pelos militares.
Membros da Irmandade estão agora na prisão e são executados por crimes políticos. Os militares assumiram o Estado, e mesmo assim há o Artigo 2° dizendo que o islã é a religião oficial do país. Tem-se esta forte aliança entre Estado e instituições religiosas que serve àqueles que estão no poder, não muito mais.
Você pede que os muçulmanos iniciem uma "autolibertação autóctone da colonização". O que significa isso?
Isso significa que os corações e as mentes dos muçulmanos continuam colonizados pela filosofia e epistemologia europeias, pelas ideais de gerenciamento estatal dos europeus, apesar do fato de que, no papel, eles já são independentes há décadas. Colonialismo não é somente ocupação militar, é um estado de espírito de ambos, tanto do colonizador quanto do colonizado.
As pessoas que estão sujeitas ao colonialismo contribuem para a continuação de formas de pensamento coloniais ao sujeitar-se a políticas e prioridades coloniais e neocoloniais. Como muçulmano, eu preciso libertar a minha própria mente, meu coração e minha alma de forma a ser a minha própria pessoa. Ao mesmo tempo, não estou rejeitando nenhuma influência de qualquer outra cultura, seja europeia ou norte-americana ou de outras regiões.
O que significa isso em termos de Estado laico?
Imitando modelos europeus, permanecemos colonizados mesmo que não haja tais controles de instituições estatais. Enraizando meu pensamento político na nossa história e tentando desvendar o real significado da história muçulmana em suas várias fases e nas diferentes partes do mundo, eu estou sendo independente em minha própria mente. Eu não estou interessado em imitar o modelo francês, britânico ou germânico; quero enraizar a minha prática e minha doutrina política de forma que transcendam a limitação colonial europeia.
É por isso que é importante elaborar o que queremos dizer com reforma islâmica. Deixem os muçulmanos tomar as suas próprias decisões. A verdadeira história da Reforma na Europa foi muito mais complexa do que apenas um padre alemão pregando algumas teses na porta de uma igreja. Movimentos de transformação precisam de bastante tempo e são, muitas vezes, uma espécie de consenso intergeracional que evolui ao longo de muitas gerações em várias partes da região. Na época, as pessoas que estavam vivenciando isso não perceberam que estavam vivendo através da Reforma cristã. Com o tempo, talvez 100 ou 200 anos depois, as pessoas olharam para trás e disseram: essa foi a Revolução Francesa.
O que isso significa para a renovação do islã?
A reforma muçulmana é um processo semelhante. No mundo, existem 1,6 bilhão de muçulmanos, e não se pode falar de todas essas variedades de islã como se fosse a mesma coisa com uma chave única, como a ignição de um carro, e essa é a reforma muçulmana. Há pessoas que elaboram ideias em diferentes partes do mundo que podem ser coerentes com a população local ou não; a pessoa pode ser até morta antes que suas ideias sejam aceitas. Isso não é incomum na história humana.
Os muçulmanos estão hoje no meio de tal processo de reforma?
Sim, porque estão falando sobre isso, porque sentem um conflito sobre certos aspectos da compreensão histórica do islã quanto aos direitos das mulheres ou sobre a liberdade religiosa. Quando eu era estudante na Universidade de Cartum, mais de 40 anos atrás, eu me sentia comprometido com a Constituição, com os direitos humanos e princípios democráticos, mas o entendimento predominante da sharia não apoiava esses valores. O fato de estar ciente da necessidade de reforma já faz parte do processo. Então, sim, estamos no meio de um processo de transformação.