"O Estado brasileiro foi um Estado eugenista"
2 de agosto de 2022O Estado brasileiro e a elite política, econômica, científica e intelectual do país adotaram práticas eugenistas nos anos 30 e 40, que são marcas da Constituição de 1934, afirma o historiador Sidney Aguilar Filho, autor do livro "Entre integralistas e nazistas: racismo, educação e autoritarismo no sertão de São Paulo”, lançado neste ano de 2022 pela Alameda Editora.
Para formular essa tese – defendida no seu doutoramento, em 2011 –, o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) conta que o "fio de Ariadne” [metáfora que invoca a mitologia grega] surgiu em 1998, quando ele ouviu pela primeira vez uma aluna contar sobre a fazenda no interior de São Paulo cujos tijolos eram marcados com a suástica, o símbolo nazista.
Havia ali algo muito maior que a memória do nazismo em uma construção antiga. Sob a tutela do Estado brasileiro, 50 crianças, de 9 a 12 anos, sendo 48 delas pretas e pardas, foram transferidas de um educandário do Rio de Janeiro para a Fazenda Cruzeiro do Sul, na cidade de Campina do Monte Alegre (SP), da família Rocha Miranda. Os Rocha Miranda, de acordo com documentos encontrados por Sidney Aguilar, faziam parte da "Câmara dos Quarenta”, um órgão de cúpula da Ação Integralista Brasileira, de Plínio Salgado.
Com uma pesquisa histórica minuciosa, em que recorreu a publicações e documentos da época e examinou detalhes de discursos de parlamentares constituintes, as descobertas do historiador foram retratadas em filme, documentário e até peças de teatro, até chegarem ao livro que comemora os 10 anos da tese. "Ideologias segregatórias do passado brasileiro cassaram e impediram a ascensão social”, afirma Aguilar, em entrevista à DW Brasil.
As teorias de supremacia branca, sustenta, difundiram-se na Medicina, no Direito, na Educação e no Urbanismo, em plena Era Vargas e com o avanço do integralismo no país.
O historiador sustenta que seu interesse nunca foi pesquisar sobre o nazismo no Brasil. "Era a história dos meninos que eu queria contar. E havia uma testemunha una.” A testemunha era Aloísio Silva, uma das crianças escravizadas na fazenda, mão de obra para uma elite ancorada num projeto racista e supremacista. Silva morreu em 2015, aos 93 anos.
Sidney Aguilar encontrou a documentação oficial de 15 crianças que viveram na fazenda no início do século 20. Após o depoimento de Aloísio Silva, na última década outros personagens surgiram para denunciar detalhes de uma história que permanecia à sombra do passado. Se a história não se repete, como observa o historiador, a triste saga de crianças vítimas de racismo e violência no interior de São Paulo tem, infelizmente, ares de contemporaneidade.
DW: Houve um personagem central que guiou suas primeiras pesquisas, o sr. Aloísio. Mas outros protagonistas e descobertas surgiram nestes 10 anos?
Sidney Aguilar Filho: Várias. Desde protagonistas, como o senhor Argemiro, até um aprofundamento de pesquisa. Outros protagonistas, que faziam parte dos acontecimentos diretos, também foram se articulando à história. O que mais aconteceu de lá pra cá, conforme a pesquisa foi se tornando notória, foi a reiterada memória de pessoas que tinham casos assim na família.
Seu Aloísio e seu Argemiro e as narrativas daqueles meninos da década de 40 começaram a ganhar ar de universalidade. Uma universalidade assustadora, absolutamente inconveniente, que começou a produzir movimentos de identificação.
Existe uma memória coletiva que parecia estar subterrânea nestas primeiras duas décadas do século 20 no Brasil e que começou a aflorar. E por isso essa história ganhou uma potência imprevista, pelo menos para mim. Nos últimos anos, de 2016 pra cá, talvez por questões políticas e históricas, e talvez por conta da divulgação do filme (Menino 23), também uma multidão de jovens reiteram a persistência de determinados comportamentos e práticas nos dias de hoje. Ou o ressurgimento destas práticas, dependendo de como se interpreta.
A intersecção entre integralismo e fascismo no Brasil já foi objeto de pesquisas acadêmicas, mas a sua pesquisa foca na infância e na educação. Seu objetivo central foi entender o envolvimento do Estado nesta política eugenista, como você revela sobre o processo de elaboração da Constituição de 1934?
Primeiro, eu queria contar uma história. O assunto era horripilante, não se contou. E o tempo foi passando. Não era a história dos nazistas que me interessava. Nunca foi e não é. Era a história dos meninos que eu queria contar. Mas eu tinha uma testemunha. Eu precisava dar sustentação à história que o seu Aloísio me trazia ou chegar à conclusão de que era falsa.
Entrei num caminho de fundamentação documental que me levasse ou a ter certeza de que ele me apresentava uma realidade concreta, explosiva, mas que eu documentaria tudo, ou essa história ficaria calada. Um dos caminhos foi a fundamentação legal. Fui buscar entender se era legal, criminoso, ilegal.
Até 1933, o momento de transferência dos meninos para a fazenda, a gente não tinha Constituição, e havia um vazio jurídico. O governo era golpista. Não tinha sido eleito. Derrubaram o Washington Luís e não havia sequer uma Justiça estruturada numa Suprema Corte. Optei por buscar a legislação dos menores, o Código dos Menores, de 1927, e fuçar nos debates constituintes que estavam em curso à época e culminaram na Constituição de 34.
Aí que me deparei com uma bancada racista. Só que essa bancada tinha conexão com o Palácio do Catete [sede do governo brasileiro à época], e as propostas eugenistas na área de educação também tinham saído do Catete. Adentraram na Assembleia Constituinte e foram defendidas por uma bancada muito próxima de Getúlio [Vargas]. Neste campo, a extrema direita racista de Oliveira Viana, os racistas ligados ao integralismo do interior de São Paulo, os médicos sanitaristas, como Miguel Couto, estavam todos juntos. Eu percebi o Estado com um aparelhamento político social, que envolvia segurança pública, assistência, saúde e educação sob a mesma guarda. Eles eram o mesmo clube, uma bancada assumidamente racista e eugenista.
Os discursos não deixavam dúvidas. Conforme fui acompanhando esse trabalho do debate constituinte, cheguei aos artigos da Constituição. Me dei conta que poderia afirmar que o que acontecia nos debates políticos acontecia com meninos pobres de orfanatos sendo mandados para o interior do sertão. Narrei os fatos, com as ferramentas que eu tinha, que era boas em termos documentais. Não me dei conta do que eu estava colocando no papel. Só quando se aproximou da defesa percebi, no meio acadêmico, que defendi a tese de que o Estado brasileiro tinha sido um Estado eugenista.
Você aborda no livro a relação da elite econômica brasileira com empresários alemães. Há os laços históricos comprovados, da família Krupp, com os Rocha Miranda. É possível fazer alguma correlação deste passado com células neonazistas no Brasil atual?
Pelo presente, tenho um imenso conjunto de dúvidas e uma imensa ignorância. Sou historiador, preciso de um retorno de 40, 50 anos, para conseguir enxergar alguma coisa. Desconheço relações diretas entre o chamado mundo empresarial institucionalizado, legalizado, com movimentos neonazistas hoje no Brasil. Pode existir? Olhando pelo retrovisor, para o passado, evidente que sim. Existe relação entre propagações de ideologias políticas autoritárias, ao longo da história, com interesses macroeconômicos? Olhando para o passado, sim.
Talvez a gente conseguisse enxergar isso em movimentos clandestinos. As relações do mundo corporativo, de empresas transnacionais, europeias e estadounidenses, que atuaram nos períodos ditatoriais na América Latina, sobretudo nos anos 60, 70 e 80, são evidentes.
Na condição de historiador fico feliz que pelo menos algumas dessas empresas, quase sempre alemãs – porque obviamente existe uma questão história maior envolvida, que remete ao nazismo –, estão entre as primeiras a reconhecerem isso. Entre a ascensão de Hitler e Roosevelt, até a Segunda Guerra, uma ascensão do panamericanismo e pangermanismo que atinge em cheio a América Latina. Talvez os melhores exemplos sejam Ford e Krupp. Ambas querem entrar e controlar a área siderúrgica na América Latina, se aproximam do governo brasileiro, se articulam a setores empresariais brasileiros, disputam espaços. Os lobistas da Ford e Krupp não terminam bem na lógica do getulismo.
A Primeira Guerra não rompeu as relações econômicas entre Brasil e Alemanha. Depois da Segunda Guerra, também não são interrompidas. Fica evidente isso na forma como o Estado brasileiro dá proteção e guarida ao filho do Krupp. As empresas alemãs, nos anos subsequentes, voltam a investir pesado no Brasil, a culminar em coisas estratégicas, como o programa nuclear Brasil- Alemanha.
A ligação tão próxima dos Krupp com a família da fazenda que mantinha os meninos negros lhe surpreendeu?
Isso é o caminho da pesquisa científica. Eu me surpreendia a todos os momentos. Em todos os momentos me parecia uma história escabrosa. A gente não pressupõe o que vai encontrar. Mas é bom lembrar que a elite econômica, seja brasileira, seja alemã, dos anos 30, 40, eram numericamente muito pequena. As relações eram quase sempre muito próximas e simbióticas. Não é difícil ir puxando o fio do novelo. Existe uma máxima na pesquisa: se está perdido e não sabe para onde ir, siga o dinheiro. Os caminhos são muito estreitos. Encontrar essa relação foi surpreendente para mim, mas olhando historicamente era muito lógico.
Em que medida as teorias eugenistas, que foram uma política, ajudam a entender as raízes do autoritarismo no Brasil e a legitimação de discursos racistas e de ódio que assistimos nos dias atuais?
De 1870 até os primeiros 40 anos do século 20, com o nazismo, essa ideia do evolucionismo social, arianismos dos mais diversos, povoa da medicina à educação, da segurança pública à engenharia de produção. Surge nas áreas mais industrializadas do planeta (Inglaterra, Bélgica, França, Itália, Alemanha e Pensilvânia e se transformam em ideologia ultraliberal no processo de expansão imperialista sob a Ásia, África e América Latina. Aqui no Brasil esse discurso também serve como a ideologia que vai pautar a transição do mundo da mão de obra escravocrata para o mundo da mão de obra livre assalariada. "Nós da elite somos superiores e vocês, proletários, são degenerados”: é a ideia de livres sim, iguais não.
É uma ideologia para pautar, através da ideia da raça e da diferença de cor de pele entre trabalhadores braçais e elites econômicas como justificativa para manutenção da desigualdade através das teorias segregatórias de base eugenista. Duas gerações depois do fim da escravidão, setores dos trabalhadores nacionais começavam a ter algum tipo de ascensão social. Essas ideologias servem para castrar e impedir esse processo. Ao mesmo tempo, subsidiaram a ideia de que o embranquecimento, a mão de obra europeia, deveria ocupar esse espaço, o que garantia a pauperização e desvalorização ainda maior do trabalho no Brasil.
As teorias do embranquecimento fazem fluir um fluxo de mão de obra assalariada expurgada da Europa e aqui encontravam uma sociedade marcada por um processo hierarquizado, e ocupavam um espaço intermediário. A mão de obra livre de pretos e pardos, no Brasil, sofre uma reviravolta nesta época. Quando analiso os que insistiam nesta tese racista e faziam parte de elites intelectuais e econômicas, não estamos falando de bobinhos puristas que estavam pautados por sua ignorância. Não dá para engolir isso cientificamente. A forma contundente com que se expressam os interesses particulares da elite não nos permitem esse tipo de aferição. Da mesma maneira que nos anos 30, 40, havia uma mundialidade nestes processos, há hoje mundialidade neste pensamento misógino, racista, e ele se compõe por interesses macroeconômicos.
Sua pesquisa aponta sobre os elos dos defensores da supremacia branca com as teses antiabolicionistas. Descobertas como essas, ajudam a elucidar o racismo estrutural?
Valorizo imensamente o conceito de racismo estrutural e acredito que hoje é uma ferramenta conceitual absolutamente fundamental. Mas não é a que eu uso. Eu enxergo o que é chamado de racismo estrutural, mas também enxergo um conjunto preconceituoso do qual o racismo faz parte, para além do que os estruturalistas chamariam de estrutura. Não quero entrar em academicismo. Que fique aqui estabelecido que se raça não existe, racismo existe. E que a lógica dos eugenistas é datável, historicamente. É uma construção do século 19 e ganha contornos de espetáculo esquizofrênico e de holocausto no nazifascismo.
Essa racionalidade técnica é oriunda deste pensamento moderno do final do século 18 para o século 19. E do mesmo jeito que construída historicamente, no meu modo de ver pode ser facilmente desmantelada. A questão é como impedir que outra narrativa absurda venha a entrar como justificativa da mentira, do controle e exploração social da riqueza. O preconceito sempre vem em pacote. O racista pelo fenótipo é misógino, homofóbico, é o que transfere a responsabilidade ao outro. Eu quis entender a cabeça dos homens que fizeram aquilo.
Você cita que o Brasil foi um dos maiores agrupamentos do partido nazista fora da Alemanha, no final do século 19 e início do século 20. A conjuntura atual lhe instiga a continuar pesquisas sobre o nazismo aqui?
Isso não me interessava em 1998 e não vai me interessar em 2022, mas não tenho como me livrar disso. Em 2015, numa entrevista, me vi diante de uma afirmação oficial da existência de mais de 250 mil pessoas envolvidas com grupos neonazistas no Brasil. A informação daquela época era de que a grande maioria era menores de idade, na faixa de 14 anos. Olhando para 2022, essas pessoas cresceram. O tempo passou e eles têm mais de 18 anos. São adultos. Esperam que alguns tenham desistido, mas outros são atuantes. Eu sou chamado a falar deste assunto. Quando estou diante de jovens, cabe a mim o papel de educador. Quando falamos de adultos, cabe à promotoria, delegados, juízes de direito, diretores de cárceres, porque é uma questão de crime hediondo. A ideia de continuar discutindo violência, autoritarismo, racismo, infância e escolas persiste. E no fim, quando olho os responsáveis ou violentadores, quase sempre encontro o mesmo universo [de pessoas]. Eu não fico correndo atrás de neonazista. Não sou especializado nisto. Mas jamais deixo de dar respostas ao que surge nas minhas pesquisas.
É impossível, ao ler seu livro, não fazer conexões do Brasil do passado com o presente. Como pesquisador, você faz esses paralelos?
Procuro não fazer. Mas toda ciência é histórica. Não sou dono dos resultados das pesquisas. As pessoas fazem essas relações. O espectador, o leitor. Hoje eu reconheço que é justamente porque o leitor e espectador fazem essa relação que essa história tem a repercussão que tem. Não é o inverso. Não é coincidência que a narrativa que eu contei em 2010 ganhou espaço no cinema e na literatura. Pessoas olharam e disseram: isso é atual, isso nos interessa.
E isso diz muito sobre o momento em que estamos vivendo. É óbvio que o meu olhar do passado sempre vai ser presente, mas o inverso não é necessariamente verdade. Mas reconheço que há uma contemporaneidade. É inegável que a forma com que a extrema direita no Brasil está atuando de maneira tão desavergonhada, faz lembrar os anos 30. Isso eu reconheço, eu vejo, eu enxergo e sinto. De fato, a história não se repete, né? Só espero que a gente não esteja vivendo o início da tragédia. Temos que entender que é a farsa, desmontá-la e seguir adiante.