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O efeito rebanho e a nova alta da covid-19 em Manaus

6 de outubro de 2020

Estudo a partir de amostras de sangue doado sugere que a capital do Amazonas teria alcançado a imunidade de rebanho. Mas uma nova onda de contágios na cidade parece contradizer essa tese.

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Enfermeiro entre leitos com pacientes de covid-19
Hospital Municipal Gilberto Novaes, em Manaus: após queda de casos, ocupação de leitos volta a crescerFoto: picture-alliance/AP Photo/F. Dana

Metrópole de 2 milhões de habitantes, Manaus foi atingida em abril e maio de forma particularmente dura pela covid-19. Imagens de enterros em massa e de hospitais superlotados rodaram o mundo. Os números oficiais até agora indicam cerca de 50 mil infectados e 2,5 mil mortos na cidade.

Como muitos dos que morreram em casa foram enterrados sem serem testados, é provável que tenha havido um grande número de casos não registrados. Só na primeira semana de maio, morreram 4,5 vezes mais pessoas na cidade do que o habitual, o que dá uma ideia da rapidez com que o vírus se disseminou. Após esse pico, entretanto, os casos diminuíram rapidamente. O que aconteceu?

Uma análise feita sob a direção da cientista Ester Cerdeira Sabino, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), concluiu que Manaus havia atingido um grau de infecção tão alto pelo coronavírus Sars-Cov-2, causador da covid-19, que é possível se falar em imunidade de rebanho. Isso explicaria por que o número de casos caiu tão rapidamente em junho.

Estudo baseado em sangue doado

A equipe examinou amostras de sangue de doações realizadas entre fevereiro e agosto pela Fundação Hospitalar de Hematologia e Hemoterapia do Amazonas (Hemoam). Em cada mês, eram disponibilizadas entre 800 e 1.100 amostras.

A pesquisa, divulgada em 21 de setembro na plataforma medRxiv, especializada em artigos médicos, é, porém, um estudo preliminar. Ele ainda não foi submetido a uma revisão por pares nem publicado oficialmente. Por isso, os cientistas preferiram inicialmente não comentar o estudo.

Mesmo assim, as conclusões não verificadas do trabalho foram publicadas pela imprensa do Brasil e do mundo. Em muitos casos, chegou-se à conclusão errada de que, uma vez alcançada a imunidade de rebanho, o perigo tinha acabado. Tais interpretações errôneas acontecem quando "algo científico sai direto na mídia", afirma Ester Cerdeira Sabino à DW. 

"O conceito de imunidade de rebanho foi usado na imprensa num sentido diferente daquele que a gente quis dizer", explica. A imunidade de rebanho, segundo a especialista, é "o momento em que o número de infectados diminui e não o momento em que a epidemia acaba".

A pesquisa se beneficiou do fato de que as amostras de sangue tinham que permanecer guardadas durante seis meses. "Medindo a prevalência de anticorpos dos doadores, a gente encontra a retrospectiva da doença", afirma Sabino.

A análise dos dados de julho e agosto mostrou que cerca de dois terços das amostras, 66,1%, foram positivas. Isso significa que a imunidade de rebanho foi alcançada, de acordo com Sabino. Mas isso não quer dizer que a epidemia acabou, aponta. "Ela continua, só que em números menores."

Pessoas oram diante de caixão em cova aberta de cemitério
Cemitério em Manaus: especialistas alertam que imunidade de rebanho não é indício de que pandemia acabouFoto: AFP/M. Dantas

"O que aconteceu em Manaus foi realmente uma certa imunidade de rebanho", afirma a microbiologista Natália Pasternak Taschner da USP, em entrevista à DW. "Por que apenas 'uma certa'? Porque imunidade de rebanho de verdade a gente só atinge com vacina. A imunidade de rebanho natural é móvel, à medida que você coloca pessoas mais suscetíveis em circulação, a taxa de transmissão volta a subir."

Segunda onda em Manaus?

Desde o final de setembro, o número de casos de covid-19 voltou a aumentar em Manaus. Sete mortes por dia foram registradas, 6% a mais do que a média dos 14 dias anteriores. A ocupação de leitos em UTIs também está aumentando. Nas clínicas privadas, chegava a 71% no final de setembro, nos hospitais públicos, era de mais de 72%. Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) concluiu, por isso, que Manaus passa por uma segunda onda da doença.

A flexibilização das regras de distanciamento social implementada após a queda no número de casos em junho, gerou multidões em praias e festas. As autoridades já ordenaram um novo fechamento de bares e balneários públicos, e o horário de funcionamento de lojas e restaurantes foi reduzido por 30 dias.

Uma abertura leva inevitavelmente a um aumento no número de casos, a não ser que sejam introduzidas regras mais rígidas de distanciamento e de higiene para proteger aqueles que ainda não foram infectados, segundo Pasternak.

"Houve um avanço rápido da doença em Manaus, seguido por uma queda abrupta, e agora os casos sobem de novo. Esse é exatamente o comportamento natural de uma epidemia quando você deixa a epidemia correr solta", explica.

Imunidade em queda?

Para Sabino, é muito cedo para dizer se Manaus vive uma segunda onda da covid-19. De acordo com a especialista, quando o número de casos aumentar novamente, isso pode significar que a imunidade das pessoas já infectadas pode diminuir rapidamente. "E que as pessoas agora estão se reinfectando", conclui.

Ainda não há informações confiáveis sobre a duração da imunidade e se a pessoa pode ser infectada mais de uma vez pelo coronavírus Sars-Cov-2.

Deixar a pandemia correr livremente para alcançar a imunidade coletiva o mais rápido possível, como sugerido por alguns governos no início da pandemia, é uma estratégia perigosa - e provavelmente mais uma desculpa para não fazer nada, argumenta Pasternak.

"O preço disso é muita gente morrer, assim como aconteceu em Manaus. Se a gente não implementar medidas de quarentena e depois uma boa campanha de vacinação, não tem como eliminar o vírus", diz a cientista.

Thomas Milz
Thomas Milz Jornalista e fotógrafo