Entrevista
16 de fevereiro de 2007Fora do Brasil, o que mais salta aos olhos do espectador do seu filme é o convívio harmônico entre diversas culturas. Já dentro do país, a recepção do filme parece ter sido mais marcada pela questão da ditadura militar. Gostaria que você comentasse esse paralelo.
Eu não sabia que, no exterior, esse assunto da miscigenação cultural tenha sido mais presente. Fico bastante contente com isso. Acho que é um momento, no mundo, em que é bom falar disso. E talvez esse seja um dos poucos bons exemplos que o Brasil pode dar: mostrar ao mundo que esse convívio é tão fácil. Ele acontece sem esforço, a gente nem se concentra muito para isso. É uma coisa natural. E o filme fala disso de uma maneira não muito panfletária, sutil. Acho que isso é o que toca as pessoas.
Em relação à ditadura no Brasil, essa distância de 30 anos que a gente ganhou é um bom momento de reflexão. É bom a gente sempre lembrar que essa não é uma boa saída, que não vale a pena. Seja no Brasil, na América Latina ou em qualquer outro lugar do mundo.
Você filmou no Bom Retiro, um bairro hoje habitado não mais por muitos judeus e italianos, mas principalmente por coreanos e bolivianos. Quando se descreve uma região como essa, no contexto europeu, se pensa em guetos, ambientes fechados, sem intercâmbio com o que está “do outro lado”. O Bom Retiro de hoje é um gueto ou essa palavra não cabe na sociedade brasileira?
Ficamos uns quatro meses no Bom Retiro, fizemos a base de produção no bairro, que tem a tradição de receber colônias de imigrantes. Os italianos chegaram primeiro, depois os judeus, agora os coreanos e bolivianos. Mas a sensação é muito mais a de um bairro cosmopolita do que a de um gueto. Mesmo considerando que os coreanos estão lá há muito pouco tempo e muitos deles não falam o português ainda, mas já agem como brasileiros, já têm essa capacidade de ficar à vontade com quem quer que seja. E o bairro tem um ambiente brasileiro, com muitos camelôs na rua. Eu não senti ali a sensação de gueto, o bairro é muito aberto.
Quando você trata no filme da questão do exílio interior do garoto, existe, de alguma maneira, uma alusão ao exílio dos imigrantes que um dia chegaram ali? Pois bem ou mal eles mantêm o ídiche, que é um outro idioma e uma forma de se distinguir da cultura local.
Um dos possíveis recortes do filme são os vários tipos de exílios: o exílio de fato, forçado, que leva a morar em outro país; o exílio no seu próprio país, como o garoto que foi morar em outra cidade, num bairro estranho; e os nossos auto-exílios, muitas vezes muito benéficos, que nos levam à reflexão, a uma volta a nós mesmos. O filme fala disso também. Sem dúvida, os imigrantes e mais especificamente a comunidade judaica, no caso do filme, formam um paralelo à história do menino.
O fato de os judeus terem passado por tudo o que passaram fez com que desenvolvessem mecanismos de sobrevivência. É interessante ver como pessoas que passaram por coisas tão duras nesse sentido recebem um novo exilado. A relação entre esses “velhos exilados” e um novo exilado é muito interessante: o tipo de solidariedade, de tratamento que essa comunidade exilada, judaica, dá ao novo exilado. Eles demonstram solidariedade, mas sem mimar demais o menino. Sem grandes dramas, porque sabem que o ser humano consegue sobreviver a isso, que o menino vai dar conta. Dão suporte, mas não ficam paparicando ou tratando o menino como um pobre coitado.
O quanto de memória pessoal você usou na construção dos personagens do filme?
O filme tem muito dos meus sentimentos, das lembranças de como senti não só o momento histórico [os anos 70], mas esse momento da vida – a passagem da infância para a adolescência. Tem muito dos meus sentimentos ali, mas não é um filme autobiográfico. Tem elementos da vida do garoto que foram parecidos com o que vivi, e muita coisa das outras pessoas da equipe, principalmente do Cláudio Galperin, que escreveu o argumento comigo.
Ele nasceu e morou no Bom Retiro. Eu nunca morei lá. O meu olhar, fazendo o filme, é exatamente o olhar do Mauro [protagonista] chegando lá. O meu pai é de família judia alemã, de Berlim. E a minha mãe é de família católica italiana. O Mauro também é filho de um “casamento misto” – no Brasil quando se fala em “casamento misto” a gente nem entende o que é. A gente nunca usa essa expressão.
Mas enfim, todo o meu approach para fazer o filme nessa cultura, nesse bairro, é mais ou menos o do Mauro. E o Cláudio Galperin, que nasceu e viveu lá, trouxe toda essa vida do Bom Retiro, os personagens, a movimentação do bairro. Tem muito dos sentimentos dele na infância. E a equipe toda trabalhou com essa freqüência da memória da infância, mesmo os mais novos, que não viveram aquela época. Acho que isso ficou, de certa forma, impresso no filme.
Os elementos mais claros que se parecem com a minha vida são o fato de eu ser filho dessa realidade no Brasil, que são as misturas de cultura. Além disso, fui um excelente goleiro e o personagem principal também se identifica com essa posição. Acho legal como a gente conseguiu inserir o futebol como um paralelo do que o garoto estava vivendo. Essa posição de goleiro, para mim, é metaforicamente muito rica. E outro ponto em comum é que meus pais também tiveram alguns problemas com a ditadura. Foi diferente, mas tiveram.
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Já que você citou o futebol: o filme é situado nos anos 70 e tem o futebol, por um lado, como um fator de união. A cena dos judeus vibrando pelo Brasil na Copa é muito simbólica. E, por outro lado, ele faz com que as pessoas esqueçam ou não vejam o que está acontecendo. O futebol continua hoje, no Brasil, fazendo esse “jogo duplo”?
Acho que está exatamente a mesma coisa e sempre vai continuar assim. Qualquer paixão ou evento popular, como o futebol é no Brasil, sempre vai ser visto dessas duas maneiras: como uma possibilidade de alegria, união, entretenimento e diversão, mas, por outro lado, como algo que pode ser manipulado, usado para distrair o povo das coisas mais importantes. No Brasil, vejo o futebol mais pelo lado positivo do que pelo negativo.
A ditadura militar, como qualquer governo no poder, tenta tirar uma casquinha dessa paixão pelo futebol do brasileiro. E até hoje acontece, mas acho que não é mais tão eficaz. A gente já está vacinado contra isso, não é mais muito enganado. Na Copa de 70, houve muito essa discussão, mas acho que não fez muita diferença. Acho que aquela grande conquista, alegria, a maior seleção de todos os tempos, um dos times que jogou futebol mais bonito e mais eficiente, contribuiu mais para a história do futebol e para a união das torcidas do que para a perpetuação da ditadura ou coisa assim.
E por que Minas Gerais como contraponto ao universo cosmopolita de São Paulo? Teve alguma relação com a escolha do Edurado Moreira [ator que vive em Minas] para o papel do pai do garoto?
Algumas coisas me levaram a Belo Horizonte. Primeiro, essa coisa introspectiva que o Mauro tem, acho que é um pouco mineiro, combina com o jeito mineiro de ser. E, em segundo lugar, sou muito fã do Tostão e queria fazer uma homenagem a ele. E o Eduardo eu teria escolhido de todo jeito para o papel.
Em termos de cores, seu filme é bastante sóbrio, não tem quase nada que agride os olhos. Essa não é geralmente uma escolha que se espera quando se trata do Brasil, quanto menos ao se falar de um caldeirão étnico, como é o caso. Por que a escolha?
Desde o roteiro, nunca quis deixar que nada fosse mais importante que os personagens e a história que estava contando. A direção de arte ou a fotografia não poderiam chamar mais a atenção do que a cena. Foi quase como se todo mundo fosse trabalhando para se esconder, para fazer seu trabalho o melhor possível, deixando os personagens em primeiro plano. Talvez esse conceito básico tenha contribuído para a questão das cores do filme.
Assim, a gente se aproximou ainda mais de uma coisa, que era passar uma sensação não da realidade, mas da realidade da memória. Acho que o filme tem isso, quase que você sente o cheiro daquela época. Essa mão leve, essa preocupação de não ficar chamando a atenção deixou essa tonalidade. E também a idéia da memória, veio tudo nesse sentido. Acho que a gente tem que se livrar um pouco dos estereótipos dos produtos vindos do Brasil e um deles é essa coisa das “cores fortes” em tudo. Não precisa ser sempre assim. Temos outros Brasis para contar.
Outra característica do filme é o bom humor em vários momentos. Esse é um bônus da cinematografia brasileira?
Sempre pensei nesse balanço entre o humor e o drama dentro do filme, dentro da história que estava contando. Uma das coisas importantes na trajetória do menino é a percepção de que a vida vai ser sempre assim: nunca vai ser totalmente feliz, nem nunca vai ser totalmente um drama. Sempre cuidei muito desse balanço. Agora, no contexto do cinema brasileiro, temos também outros filmes com pouco espaço para o humor. Mas o brasileiro é um povo bem-humorado e acho que é natural o humor se refletir no nosso trabalho.