Música em nome de Deus
2 de agosto de 2003Neste sábado (02/08), o compositor polonês Krzysztof Penderecki recebe o Prêmio da Música Sacra Européia. A cerimônica de entrega faz parte do Festival de Schwäbisch Gmünd 2003, realizado de 11 de junho a 3 de agosto. A distinção foi instituída em 1999, e destina-se a intérpretes e compositores com mérito excepcional neste campo. Os demais laureados estão os compositores Dieter Schnebel e Petr Eben e os regentes Eric Ericson e Peter Schreier.
Na realidade, prêmios já são quase rotina na vida de um compositor fruto da estranha combinação entre comunismo e catolicismo fervoroso que marca seu país natal.
Varrendo a mesa
Estamos em 1959, na Polônia sob regime comunista. Acaba-se de anunciar os laureados do concurso da Liga dos Compositores Poloneses, com participação anônima. O terceiro lugar cabe a um músico de 26 anos, Krzysztof Penderecki, natural de Debica. Após estudar filosofia e violino, ele se formara no ano anterior pela Academia de Música de Cracóvia, sendo imediatamente contratado pela instituição, como professor de Composição.
O anúncio das demais colocações traz uma surpresa: o segundo lugar do concurso também ficara com Penderecki. E, da mesma forma, o primeiro! Uma das obras tem temática bíblica: Salmos de Davi, para coro e percussão.
Uma tripla premiação desse gênero é fato extremamente raro, se não único na história da música. Assim, de forma quase legendária, iniciava-se a carreira internacional de um dos mais bem sucedidos compositores de vanguarda do mundo. Já no ano seguinte, ele seria convidado a participar do renomado festival de música de Donaueschingen, na Alemanha. A composição Trenodia pelas vítimas de Hiroshima, para 52 instrumentos de corda, valeu-lhe o Prêmio da UNESCO de 1961.
Não apenas os sons da música pendereckiana da época são revolucionários: suas partituras de juventude também inovam do ponto de vista gráfico. Ele emprega linhas sinuosas e figuras geométricas para expressar o que extrapola os limites da notação musical tradicional. Igualmente notável é seu uso de técnicas instrumentais não convencionais e de clusters móveis – "cachos" de notas, dispostas tão próximas que deixam de soar como acordes, para formar tapetes de ruídos, que se expandem e contraem como organismos vivos.
Enfant terrible
aclamadoA visita a uma grande loja de CDs da Alemanha dá uma idéia da popularidade atípica de Penderecki. Ele é um dos raríssimos compositores eruditos vivos, cujas obras sinfônico-corais aparecem lado a lado com as dos grandes dos séculos passados. Enquanto isso, os discos de seus colegas – mesmo os dos maiores nomes, como György Ligeti, John Cage, Pierre Boulez ou Luciano Berio – continuam segregados ao gueto da seção "Música nova", de proporções relativamente modestas. Enfim: Penderecki é talvez o único best-seller da vanguarda musical mundial.
A partir da década de 80, o músico polonês permite-se uma surpreendente revolução estilística: ele abandona os idiomas contemporâneos, retornando em parte às formas e harmonias do pós-romantismo. Suas sinfonias e peças de câmara mais recentes lembram antes um Gustav Mahler (1860-1911) ou Max Reger (1873-1916) anacrônico do que o enfant terrible de Cracóvia.
Por um desses paradoxos do mundo de concertos, tal guinada para o convencional encontrou ressonância bastante reticente. Penderecki passara a ser comportado demais para os amantes da música nova, embora permanecendo ainda "difícil" demais para o público musical totalmente conservador. Mas a esta altura sua criação de juventude já ocupa vaga cativa no repertório de concertos, e garantirá a Penderecki um posto incontestável entre os grandes da música do século 20. E continuará valendo-lhe prêmios como este, do Festival de Música Sacra Européia.
Um estranho no cânon
Antes de receber a distinção no valor de cinco mil euros, neste sábado, o músico polonês participa do Festival de Schwäbisch Gmünd, regendo uma de suas obras mais celebradas: a monumental Passio et mors Domini nostri Jesu Christi secundum Lucam, para coro, solistas e orquestra sinfônica, também conhecida simplesmente como Paixão segundo São Lucas.
Ela data de 1966 e foi estreada na cidade de Münster, na Vestfália, numa encomenda da Rádio WDR, da Alemanha. Apesar de empregar uma linguagem musical muito avançada, a obra ilustra algumas das características que tornaram a música de Penderecki tão apreciada pelo público e – ao mesmo tempo – vulnerável ao ataque dos críticos mais afoitos (e possivelmente de colegas invejosos!): alta intensidade emocional, efeitos teatrais, alternância de momentos sublimes e expressões de horror pelo suplício do Salvador, polifonia, grande complexidade nos detalhes "acondicionada" num arco de compreensão e impacto imediatos.
Características todas essas já presentes no modelo seguido por Penderecki: a paixão barroca, em especial, as duas de Johann Sebastian Bach que chegaram até nós. Não é por acaso que esta tornou-se "a" Paixão de São Lucas da música erudita; a única admitida, 250 anos mais tarde, no cânon estabelecido pelas paixões segundo São João e São Mateus, de Bach.
Krzysztof Penderecki completará 70 anos de idade em 23 de novembro próximo.