Museus alemães celebram 40 anos da videoarte
24 de abril de 2006A idéia não é, segundo os curadores, traçar um panorama dos artistas nascidos na Alemanha, que se ocuparam ou ainda se ocupam do que se convencionou chamar videoarte. Trata-se, antes de mais nada, de reconstruir os caminhos estéticos e as tentativas de reflexão que moldaram esta vertente da história da arte dos anos 60 até hoje.
A escolha de uma “data de nascimento" para a videoarte, esclarecem os curadores, é fruto de reflexões anteriores, a partir das quais passou-se a acreditar que o gênero surgiu no início dos anos 60, com as intervenções do coreano Nam June Paik na Alemanha.
Visualizando o ruído
Os experimentos de Paik na Galeria Parnass, em Wuppertal, criaram, em 1963, o terreno para as primeiras manipulações envolvendo aparelhos de TV. Nestes "primeiros passos”, o artista visualizava o ruído, em analogia ao que se ouvia nas inovações sonoras de Karlheiz Stockhausen, no estúdio da emissora WDR, em Colônia.
Estava instaurada a descoberta estética do stand by e a celebração do erro. Interferências propositais na imagem, que davam à obra a aura de arte. Anos mais tarde, a partir de 1968, disseminava-se a presença da videoarte em diversas insitutições dentro e fora da Alemanha.
Vingança contra a TV
Os primeiros trabalhos refletiam, em primeiro plano, a própria tecnologia, buscando, de forma lúdica, revelar o meio em ascensão. Anos mais tarde, alguns artistas passaram a ver na videoarte uma forma de "vingança" contra a má qualidade do que se via na TV. Nas palavras do próprio Paik, em 1982: “Se a televisão nos aterroriza há anos, então agora chegou a hora de darmos o troco”.
Enquanto alguns trabalhos remetiam explicitamente à história da arte (leia-se aqui pintura), representantes de outras vertentes buscavam na videoarte uma alternativa de narração para o cinema como documento. Para outros, o trabalho com vídeo servia apenas como uma ferramenta a mais na constituição da performance ou de um work in progress.
Beckett, Beuys, Wilson
A mostra 40anosvideoarte.de Herança digital (40jahrevideokunst.de Digitales Erbe) nos museus alemães é dividida em cinco pilares: Primórdios nos anos 60 (Kunsthalle Bremen), anos 60 até início dos 70 (ZKM Karlsruhe), videoarte na antiga Alemanha Oriental (Museu de Artes Plásticas de Leipzig), anos 80 (K21, Düsseldorf) e produção atual (Lenbachhaus, Munique). Nos 59 trabalhos expostos nos cinco museus, desparecem com freqüência as fronteiras entre instalação, performance ou escultura em vídeo.
A diversidade estética e temática dos trabalhos passa por He Joe, de Samuel Beckett (1965/66), peça escrita e dirigida pelo escritor e transmitida pela TV alemã por ocasião de seus 60 anos. Presentes estão também Filz TV (TV Feltro), de Joseph Beuys (1970), em que o artista "luta boxe" com uma tela de televisão cuidadosamente coberta pelo material e Video 50, de Roberto Wilson, uma sucessão enigmática de imagens que remetem à história da arte e do cinema e que foram transmitidas pela TV alemã em 1978.
Anos 80: reflexões de Flusser
Na mostra dedicada aos anos 80 (K21, em Düsseldorf) – que provoca uma espécie de dejà vú estético em qualquer visitante que tenha lembranças dos 80 – há uma seção especial que destaca a relação da videoarte com a televisão. Expostos numa vitrine estão cartazes de festivais de vídeo e simpósios sobre a videoarte realizados na década de 80, como o Encontro de Debates sobre Estética de Mídia e Arte, em 1988, com a presença do teórico Vilém Flusser, que viria a falecer dois anos mais tarde.
Considerações sobre a herança digital
A idéia das cinco mostras é chamar a atenção para o fato de que a videoarte hoje não é apenas valorizada do ponto de vista econômico, no mercado de arte, mas deve ser vista como uma herança cultural significativa. Fica claro que colecionadores, curadores, restauradores e arquivistas começam gradualmente a levar a sério o valor da imagem eletrônica e da herança digital. Mesmo lembrando que esta “herança digital” é formada, em primeiro plano, a partir da digitalização de obras de arte analógicas, conservadas até hoje em museu.
Há de se notar que uma das questões centrais enfrentadas por acervos e museus, que abrigam trabalhos de videoarte, diz respeito não somente à possível “perda de material arquivado” (devido às condições de armazenamento ou mesmo à desintegração gradual da fita magnética), mas também à forma com que as próximas obras serão registradas. Pois muitos dos formatos analógicos ou digitais das últimas décadas simplesmente caíram em desuso.
Relação entre tempo e espaço
Outro paradoxo com que se deparam os curadores, ao tentarem reescrever a história da videoarte, é a relação entre tempo e espaço. "Dispomos, em nossa cultura, de dois modelos diversos, que nos permitem tentar controlar o tempo: a imobilização da imagem no museu e a imobilização do espectador na sala de cinema. Os dois modelos, porém, falham quando as imagens em movimento são deslocadas para o espaço do museu”, observa o teórico alemão Boris Groys, em texto publicado no catálogo da exposição.
O visitante se "perde" entre duas posturas distintas: assistir parado, como na sala de cinema, aos vídeos apresentados, ou continuar se deslocando, como se estivesse frente a obras de arte convencionais, expostas naquele espaço. Este visitante, lembra Groys,´"é, dentro de pouco tempo, obrigado a reconhecer que não há, neste caso, nenhuma solução adequada ou satisfatória”. No entanto, é exatamente através desta “insegurança fundamental” e da ausência de controle sobre o tempo que a videoarte, exposta no museu, consegue questionar os conceitos tradicionais de tempo, espaço, contemplação ou velocidade.
Internet: espaço transgeográfico
Em suma, a exposição e a Edição de Estudos (composta por 12 DVDs, com mais de 26 horas de material) das quatro décadas de videoarte, em suas mais diversas formas e formatos, deixa em aberto o que Boris Groys resume em seu texto Da imagem ao arquivo – e de volta: "Somos obrigados a rever e redefinir radicalmente nossas idéias a respeito do destino das imagens na era da reprodutibilidade técnica, como este fora descrito por Walter Benjamim em seu famoso ensaio”.
Para Benjamin, o original de uma obra de arte estava atrelado a seu lugar específico, quase sagrado. A cópia, por sua vez, era profana, deslocada, desterritorializada. Hoje, porém, quando se fala no “arquivo de imagem” que compõe uma obra de arte, o original carrega em si um não-lugar e uma não-identidade, já sendo desterritorializado por princípio.
O que não dizer então da produção de um VJ, que mixa seu vídeo em tempo real? E da internet, um "espaço de exposição quase transgeográfico", como define Sabine Maria Schmidt, em texto publicado no catálogo da mostra. Ou seja, ao ser abolida a distinção entre original e cópia, as cópias expostas em um museu – como no caso da exposição em cinco diferentes instituições alemãs até o próximo 21 de maio – assumem o lugar de originais. “A cópia se converte em original”, conclui Groys. O que diria Benjamin disso?