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"Moritat": cantando o fascínio do hediondo

Augusto Valente4 de outubro de 2006

Em sua "Ópera dos Três Vinténs", Brecht contribuiu para manter vivo um gênero de canto de rua. Também conhecido como "küchenlied", é uma espécie de romance criminal musicado, tradicional do século 19.

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Com a 'Moritat de Mackie Messer' Brecht eternizou esse gênero popularFoto: AP

Sem dúvida, a melodia mais famosa da Ópera dos Três Vinténs é ouvida logo no prólogo: trata-se de Die Moritat von Mackie Messer, conhecida em português como A balada de Mac Navalha. O website allmusic.com registra 605 gravações, somente da versão em inglês, transformada por Louis Armstrong num jazz-standard, sob o título Mack the Knife. Legendária é também a roufenha versão do próprio Bertolt Brecht, gravada já em 1928.

Na já clássica Ópera do Malandro, a versão "carioquizada" da peça brechtiana, Chico Buarque utiliza a melodia de Kurt Weill para introduzir assim seu protagonista com um toque sociopolítico:

O malandro tá na greta
Na sarjeta do país
E quem passa acha graça
Na desgraça do infeliz.

A apresentação de Brecht é mais personalizada: ele enumera com distância irônica alguns dos mais ignóbeis crimes do bandido Mac Navalha. Para tal, faz uso de uma forma de canto de rua muito popular na Alemanha no século 19 e praticamente extinta por volta de 1930: a moritat.

Assassinatos, mutilações e estupros

O próprio nome já antecipa o conteúdo: deduz-se que moritat venha de "Mordtat" (homicídio). Crimes hediondos – assassinatos, mutilações, estupros –, de preferência com base em acontecimentos reais, são de fato o tema focal desse tipo de canção.

Bänkelsaenger
O pintor Watteau (1758-1823) retratou um cantador da época em 'Le Violoneux'Foto: PA/dpa

Sabinchen war ein Frauenzimmer, datada da primeira metade do século 19, é um exemplo clássico. Ela relata como a "bela e virtuosa" criada Sabinchen é seduzida e tornada cúmplice de roubo por um "sapateiro de Treuenbrietzen", inescrupuloso e beberrão. Acusada do delito, é expulsa da casa dos patrões. Ela amaldiçoa o amante – "cão preto, desgraçado" – que, em resposta:

"Tomou duma navalha / E a garganta lhe cortou. // O sangue jorrou aos céus, / No ato Sabinchen tombou."

Contudo o crime é descoberto, o assassino fica preso "até sua fria sepultura". Moral da história:"Nunca confie num sapateiro. / Tantas vezes vai a jarra ao poço / Que um dia a alça quebra".

Comparemos com o tom da moritat de Brecht (em tradução literal): "E o tubarão tem dentes / E os traz na cara, / E Macheath tem uma faca / Mas a faca não se vê. [...] Jenny Towler foi encontrada / Com uma faca no peito. / E pelo cais vai Mackie Messer / Que da coisa nada sabe. // E o grande incêndio de Soho, / Sete crianças e um velho. / E, na multidão, Mackie Messer, / A quem nada se pergunta e que nada sabe".

Leia na próxima página sobre as origens medievais da moritat Origens medievais

A moritat é também conhecida como küchenlied (canção de cozinha). Certos autores fazem porém uma distinção: esta última narraria os acontecimentos mais do ponto de vista feminino, incluindo também canções de desilusão amorosa.

De qualquer modo, a tradução de moritat por "balada" é inexata. Apesar de se tratar, como esta, de um gênero poético-narrativo, a moritat se especializa em evocar (ou tentar exorcizar?!) os medos e perigos da vida dos mais pobres.

Contudo, para se encontrar suas raízes, é preciso de fato retornar à balada folclórica (volksballade) da Idade Média. Desenvolvidas a partir dos heldenlieder germânicos, essas breves canções estróficas contavam os feitos de heróis históricos e/ou míticos, porém concentrando-se no lado humanamente comovente da narrativa, em motivos como despedida, reencontro, a morte do ser amado, fidelidade e traição, crime e vingança.

Como na literatura de cordel

A forma ganha novos impulsos nos séculos 15 e 16, através do zeitungslied (canção de jornal). Atendendo às necessidades de informação e entretenimento do público das feiras e quermesses, cantadores itinerantes relatavam com detalhes os mais recentes crimes e catástrofes naturais, geralmente citando data, nomes e locais exatos.

Frank Wedekind, 1864- 1918
As 'moritaten' de Frank Wedekind também ficaram famosas

Em seguida – como na literatura de cordel do Nordeste brasileiro – as informações podiam ser compradas em forma de panfletos. Para melhor atrair a atenção visual e auditiva, o cantador se apresentava sobre um escabelo, o que deu origem à denominação bänkellied ou bänkelsang (canto de banquinho), que se alterna com gassenlied (canto de rua).

A moritat e/ou küchenlied é, portanto, um subgênero "criminal" dos bänkellieder. Do zeitungslied renascentista ela manteve ainda a característica de, sempre que possível, vir acompanhada por painéis ilustrativos, para os quais o cantador ia apontando com uma varinha, cena a cena, como numa história em quadrinhos.

Tradicionalmente, as canções eram acompanhadas pelo próprio cantador, ao realejo. O compositor de Brecht, Kurt Weill, prestou tributo a este fato, ao indicar que o acompanhamento da Moritat von Mackie Messer seja executado "à moda de um realejo".

O fascínio do horror continua vivo

Movendo-se na tênue linha entre a contemplação fascinada do horror e a revolta contra o mesmo, o histórico dessas canções de rua é acidentado. Por exemplo, em 1819 a polícia de Hamburgo proibiu as atividades dos bänkelsänger, por suspeita de subversão.

Antes de praticamente ser banido do mundo germanófono, na década de 1930, o gênero floresceu nos teatros de varieté e kabarett, merecendo a atenção de poetas próximos às fontes populares, como Joachim Ringelnatz, Kurt Tucholsky, Frank Wedekind e, naturalmente, Bertolt Brecht.

Der letzte Bänkelsänger
Marko Marschall (Spielmann Max von Gluchowe) intitula-se 'o último cantador de rua'Foto: PA/dpa

Porém a fascinação de cantar o pavoroso continua viva, aqui e ali. Após prolífica carreira internacional como cantora de câmara e concerto, a soprano Agnes Giebel continua, aos mais de 80 anos de idade, oferecendo generosos recitais de küchenlieder, acompanhados pelos indefectíveis painéis ilustrativos.

O grupo Leierkastenheiterkeit (Alegria de Realejo) cultiva plenamente a tradição, desde o instrumentário até os figurinos de época, palestras e eventos de teatro de rua. O suíço Peter Hunziger anuncia-se "há 40 anos cantador de moritaten e bänkelsänge". Mas neste ponto ele tem que enfrentar a concorrência de Marko Marschall (Spielmann Max von Gluchowe), auto-intitulado "o último cantador de rua".