Leis de controle de armas dividem cada vez mais os EUA
30 de maio de 2022A realização da convenção anual da Associação Nacional do Rifle (NRA) dos Estados Unidos em Houston, Texas – menos de 72 horas após a chacina numa escola do mesmo estado, que deixou 21 mortos – provocou a indignação entre opositores do lobby armamentista.
O Partido Democrata reivindica medidas de controle mais rigorosas, porém a resistência veemente dos republicanos gera um impasse. Um cisma político nacional que se manifestou de maneira dramática durante o evento.
Em seus três dias (27-29/05), uma chamativa exposição ostentava 57 mil metros quadrados de armas e equipamento de tiro, a apenas cinco horas de carro da Robb Elementary School de Uvalde, palco da chacina. Entre as centenas de peças exibidas estavam rifles de assalto tipo AR-15, semelhantes aos que usou o autor do massacre, um rapaz de 18 anos. A fabricante Daniel Defense cancelou sua participação no evento.
Diante do local, manifestantes portavam faixas reivindicando mais checagens de antecedentes na venda de armas de fogo, a proibição dos equipamentos mais letais e o fim total da posse de armas privada. "Vergonha!", bradavam os partidários dos controles, ao que os simpatizantes da NRA respondiam: "Armas para os professores".
Da autodefesa a fã-clube ardoroso
Contudo, tanto adversários quanto defensores americanos das armas partem do princípio que as mais recentes exigências contrárias se dissiparão antes de traduzir-se em legislação – e a NRA está apostando nisso. A posse é protegida pela Segunda Emenda da Constituição dos EUA, e no país há menos cidadãos do que armas pertencentes a civis.
A cultura armamentista é tão normalizada que as famílias levam as crianças a eventos como a convenção da NRA. Numa cabina do pavilhão, um menino aprendia a atirar, auxiliado pela tecnologia de realidade virtual (VR), enquanto um grupo de adultos o incentivava.
Cenas como essa comprovam que a cultura armamentista americana "evoluiu" do direito à autodefesa a uma comunidade ativa de entusiastas. Há incontáveis tipos de pistolas, rifles, espingardas e revólveres, nas mais variadas cores e revestimentos. Alguns são até gravados ou pintados à mão. Os fãs portam orgulhosamente a merchandise dos fabricantes e colecionam fuzis como em qualquer outro hobby.
Em parte, essa tendência a uma cultura armamentista mais explícita partiu de uma interpretação mais genérica da Segunda Emenda. "Hoje, uma parte dos americanos vê isso como um direito praticamente ilimitado", confirma à DW Patrick J. Charles, jurista erudito e historiador especializado em direitos armamentistas e na Constituição.
"Mesmo que no século 20 fosse visto como um direito individual, era num âmbito bem estrito, para se proteger em casa e talvez em público – mas era necessário ter uma licença. O direito de que se fala hoje em dia é totalmente dissociado do que se tencionava originalmente."
Leis de armas "sãs"
Na década de 1970, quase um século após sua fundação, a NRA passou a adotar uma abordagem mais linha-dura. Segundo Charles, essa guinada extremista não era parte integral da agenda de liderança da associação, mas foi necessária para apaziguar seu contingente crescente. Hoje, segundo dados próprios, ela possui mais de 5 milhões de membros.
"A NRA sabe que tem que se mover cada vez para a direita a fim de manter seus sócios felizes. Mesmo que ela desapareça amanhã, esse grupo de partidários vai continuar existindo e encontrar outros modos de se reunir e estar politicamente ativo."
Glenn Keels, veterano de guerra e ex-membro da NRA, concorda que os defensores das armas se tornaram mais extremos ao longo dos anos. Embora não querendo uma proibição total, ele defende a imposição de restrições mais severas, e que sejam banidos certos tipos de armamentos – como o utilizado em Uvalde.
"Estamos reivindicando leis de armas sãs – usamos intencionalmente a palavra 'sã'. Eles dizem: 'Ah, eles podiam ter feito a mesma coisa com uma espingarda.' Lorota", afirma Keels, que pega o celular para mostrar um vídeo em que atira num campo de tiro ao alvo ao ar livre usando um fuzil de assalto semelhante ao do atentado.
"Ninguém pode se defender contra isso, a menos que tenha equipamento preparado. Não adianta se esconder atrás de uma mesa de escola: a bala atravessa direto. Não me diga que você precisa disso para autodefesa. A coisa atravessa paredes!"
"Mal" inevitável e polarização política
Dados dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças indicam que em 2020 as armas de fogo foram a principal causa de mortes infantis, seguidas pelos acidentes de trânsito. Os sócios da NRA inevitavelmente desviam a culpa das armas, alegando que assassinatos são um "mal" inevitável, que nenhuma legislação extirpará.
"Tem gente má no mundo", argumenta Kenny Dobbs, um campeão internacional de basquete que interage com os manifestantes diante do pavilhão da convenção. "Mesmo que você tome as armas, pode vir uma pessoa má e [atropelar] 40, 50. Não tem lei que vá impedir."
As armas são uma questão central na guerra cultural da política dos EUA. O Partido Republicano se opõe ao controle e barra toda legislação restritiva, de forma a garantir fundos de campanha da NRA e os votos de seus simpatizantes. Com eleições à vista, é improvável que os republicanos vão fazer qualquer concessão no momento, apesar do segundo massacre mais mortal do país, que custou as vidas de 19 crianças.
Expressar amor pelas armas e respaldo à Segunda Emenda é o que arrecada votos conservadores. O Senado sob domínio republicano já barrou projetos de lei para controle armamentista e se conta com que vá iniciar uma nova rodada de conversações a respeito, após a mais recente chacina.
A narrativa oposta se aplica ao Partido Democrata. "[Ex-presidente Donald] Trump: olhe tudo o que ele vivia repetindo, como 'Eu amo a Segunda Emenda'. Ele provavelmente nem seria capaz de repetir o que ela diz, fora que é algo que tem a ver com armas. É o que a gente diz para deixar contentes os conservadores", explica Charles.
O presidente Joe Biden visitou Uvalde no domingo, encontrou-se com as famílias das crianças e professores assassinados. Durante uma cerimônia numa igreja, manifestantes entoavam "Façam alguma coisa" para o democrata, que respondeu: "Vamos fazer."
Diante do profundo abismo que divide o país nessa questão, contudo, o jurista Patrick J. Charles está cético: "Honestamente, eu não acho que eles vão ceder e apoiar nada, é uma tática de procrastinação." Os republicanos apostam que a indignação se dissipa sempre rapidamente, após um tiroteio: "Alguma outra coisa vai aparecer, e aí eles podem seguir adiante para o próximo assunto."
Keels, o veterano que passou a tarde protestando do lado de fora da convenção, também vê com pessimismo o futuro imediato do controle de armas nos EUA. Quanto à perspectiva de reformas sobre o tema: "Eu duvido. Acho que vai piorar antes de melhorar. Não tenho muitas esperanças. Mas temos que continuar tentando."