O debate sobre uma divisão mais igualitária da cidade no trânsito é algo antigo em Berlim. Propostas como a expansão de ciclovias, a ampliação do transporte coletivo ou a utilização de vagas de estacionamento para criação de espaços de lazer para pedestres são propostas constantes nesta discussão.
Para promover uma divisão igualitária dos espaços públicos e combater emissões que causam o aquecimento global, o atual governo lançou um plano de investimento de 28,1 bilhões de euros (cerca de 181 bilhões de reais) para reformas e ampliação da infraestrutura de transporte público e definiu diretrizes de mobilidade urbana, focadas em bicicletas e no transporte público. Há ainda um debate sobre a criação de um pedágio para carros que circulam no centro da cidade para diminuir o número de automóveis na região.
Todas essas iniciativas e debates, porém, enfrentam forte resistência do lobby automotivo e de partidos conservadores como a União Democrata Cristã (CDU), da chanceler federal Angela Merkel, e de populistas de direita da Alternativa para a Alemanha (AfD). Os argumentos são sempre os mesmos: carros estariam sendo discriminados nestas propostas.
Nesta linha de raciocínio, automóveis seriam prejudicados ao perder o espaço que já possuem ou por não receberem o mesmo investimento que está sendo feito em outras áreas. Os repasses, argumentam os conservadores, poderiam ser divididos para a construção mais ruas e estacionamentos. Apesar de ocuparem a maior fatia dos espaços urbanos, motoristas se dizem injustiçados e se recusam a perder certos privilégios.
Assim no âmbito da política, transformações reais na cidade andam a passos lentos. Por isso, para tentar promover uma mudança concreta e rápida, uma iniciativa lançou no mês passado uma proposta um tanto ambiciosa: uma consulta popular para forçar a proibição da circulação de automóveis na região que fica dentro do anel do S-Bahn em Berlim, que corresponde a uma área de 88 quilômetros quadrados onde vivem cerca de 1 milhão de habitantes.
Essa proibição vai além de propostas que previam a diminuição da circulação de carros apenas no centro da capital alemã. Segundo a iniciativa, apenas ônibus, taxis, automóveis da polícia, de entregas, de moradores desta região e bombeiros poderão circular dentro do anel do S-Bahn, o que reduziria em dois terços o tráfego nesta área.
"Menos carros significa ar mais limpo e menos barulho. E nossas ruas ficarão mais seguras, o que possibilitará também que crianças possam ir sozinhas para a escola", afirmou a porta-voz da iniciativa, Anne Gläser, à emissora local rbb.
De acordo com a iniciativa, a redução do número de carros em circulação na região aumentará a qualidade de vida dos moradores, a segurança no trânsito e contribuirá para reduzir emissões que causam o aquecimento global, além de promover uma divisão mais igualitária do espaço urbano em detrimento daqueles que usam meios de transporte menos poluentes e mais saudáveis.
Para alcançar essa mudança, o primeiro passo é a coleta de 20 mil assinaturas entre abril e setembro de 2021. Isso possibilitará a apresentação de uma petição ao parlamento local, que analisará a proposta. Se a petição for recusada, a iniciativa tem quatro meses para recolher cerca de 175 mil assinaturas. Se a meta for alcançada, o governo precisa promover então a consulta popular sobre a legislação desenvolvida pelo grupo para a proibição da circulação de automóveis na região do anel do S-Bahn. Essa votação está programada pelos organizadores para ocorrer em 2023.
A consulta não é vinculativa, mas governos locais costumam respeitar o desejo da população. Se a maioria dos berlinenses aprovar a medida, uma transformação real na cidade pode ocorrer nos próximos anos por meio de um pequeno passo iniciado por um grupo de ativistas voluntários e apoiado pela população.
No momento, é difícil saber se a proposta tem apoio suficiente para tal, mas os ativistas devem garantir a coletas das primeiras 20 mil assinaturas, e as outras 175 mil também devem ser alcançadas. Nos últimos anos, foi registrado um aumento no número de ciclistas em Berlim.
Esse é o meio de transporte que mais cresce na capital alemã, segundo uma pesquisa do governo local divulgada em março que reuniu dados coletados em 2018. A participação de bicicletas no total do tráfego passou de 13% para 18% entre 2013 e 2018. Já a de carros caiu de 30% para 26% neste mesmo período. A porcentagem do transporte público é de 27% e de distâncias percorridas a pé de 30%. Ou seja, os automóveis estão em número bem menor do que os outros meios de transporte, mas, apesar desta realidade, ocupam 58% do espaço urbano destinado para o trânsito em Berlim.
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Clarissa Neher é jornalista da DW Brasil e mora desde 2008 na capital alemã. Na coluna Checkpoint Berlim, escreve sobre a cidade que já não é mais tão pobre, mas continua sexy. Siga-a no Twitter.