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Estado de DireitoBrasil

"Igualar ofensa a ministro a golpismo é passo autoritário"

19 de julho de 2023

Em entrevista, professor de direito afirma que honra de Alexandre de Moraes não pode ser comparada à integridade do Estado democrático de direito, e que reação da Justiça "tem cheiro da finada Lei de Segurança Nacional".

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Alexandre de Moraes
Alexandre de Moraes afirma ter sido xingado e que um dos investigados teria agredido seu filho no aeroporto de RomaFoto: EVARISTO SA/AFP

Há alguns anos, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) vêm acumulado episódios de hostilidade em aeroportos, como consequência da radicalização política e da politização da corte. Os ataques tornaram-se mais frequentes após o então presidente Jair Bolsonaro antagonizar com membros do tribunal que, em inquéritos e processos variados, buscaram colocar limites às suas investidas autoritárias.

O caso mais recente ocorreu na sexta-feira (14/07), em Roma, quando Alexandre de Moraes – um antípoda preferencial do bolsonarismo no Judiciário devido à sua relatoria do inquérito dos atos antidemocráticos e ao exercício da presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante as últimas eleições – e seu filho foram interpelados de forma agressiva.

A reação das autoridades ao caso tem sido rápida e severa. Assim que pousaram no Brasil, os supostos agressores foram identificados pela Polícia Federal (PF), que abriu um inquérito para investigar o ocorrido. Eles já prestaram depoimento, quando negaram as acusações, foram alvos de mandados de busca e apreensão autorizados pela presidente do STF, Rosa Weber, e tiveram computadores e celulares apreendidos.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu punição severa e comparou os investigados a um "animal selvagem", e o ministro da Justiça, Flávio Dino, saiu em defesa da ação da PF e disse que "passou da hora de naturalizar absurdos".

O desdobramento do incidente em Roma vem provocando debates sobre a reação das autoridades, e alguns especialistas apontam risco de a intensidade das medidas tomadas assemelharem-se ao autoritarismo que o próprio Supremo buscava combater durante o governo Bolsonaro.

Em entrevista à DW, Davi Tangerino, professor de direito penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), avalia que as ações tomadas até momento para investigar o episódio são "excessivas" e evocam a conduta de regimes autoritários que equiparam a honra pessoal de autoridades à integridade do próprio Estado.

"Xingar ministro tem algum potencial de romper com a ordem democrática? Não vejo margem para isso", diz Tangerino. Ele também afirma que o caso deveria tramitar na primeira instância da Justiça Federal em São Paulo, capital do estado onde moram os investigados, e não no Supremo.

O professor da UERJ afirma ainda que, pelo que se sabe até o momento, não haveria motivos para a busca e apreensão de computadores e celulares feita na casa deles pela PF, a menos que as autoridades tenham identificado vínculo dos investigados com os atos golpistas de 8 de janeiro.

"A honra do ministro Moraes é um bem jurídico importante, como a honra de todos. Mas comparar a honra do ministro à integridade do Estado é um passo que os regimes autoritários dão, e é esse passo que a gente não pode dar", afirma.

DW Brasil: O STF está exagerando na reação ao ocorrido no aeroporto de Roma ou agindo bem?

Davi Tangerino: Entendo que é excessivo. Por tudo o que sabemos até agora, temos um possível crime contra a honra e talvez lesão corporal leve contra o filho do ministro. Não estou dizendo que não seria crime, mas são crimes com penas muito baixas.

A busca e apreensão na casa dos investigados é justificável?

Busca e apreensão tem um sentido de coleta de provas adicionais. Para provar ofensas verbais nas quais há testemunhas e imagens de câmeras de segurança, o que uma busca e apreensão na casa dessas pessoas poderia revelar? Parece-me excessivo.

Falou-se em possivelmente enquadrar as supostas ofensas como crime contra o Estado democrático de direito.

Mas qual seria o crime contra o Estado democrático de direito? Xingar ministro tem algum potencial de romper com a ordem democrática? Não vejo margem para isso.

Não podemos extrair disso que qualquer ofensa a ministro seja um ato antidemocrático, no sentido de crimes contra o Estado democrático de direito, sob pena de nos aproximarmos de regimes autoritários.

Davi Tangerino
Davi Tangerino: "Temos que encontrar um ponto de equilíbrio ao proteger a honra dos ministros"Foto: Privat

E quanto ao juiz responsável pelo inquérito? Os autos estão no Supremo, e quem autorizou a busca e apreensão foi a presidente da corte, Rosa Weber. Por que o caso foi direto para o Supremo e não para a primeira instância?

O Supremo entendeu que seria um ataque institucional, e que por isso teria essa competência. Mas não foi um ataque ao STF, foi um ataque à honra do ministro, que de acordo com as regras processuais deveria ter ido para a primeira instância da Justiça Federal em São Paulo.

Não podemos entender que um sujeito xingar um ministro seja um ataque ao próprio tribunal.

Dino disse que a busca e apreensão se justificava pois "pelos indícios de crimes já perpetrados" e que não se tratava de fishing expedition [termo informal usado quando autoridades fazem buscas especulativas por elementos que possam incriminar um investigado].

O ministro Flávio Dino é um sujeito muito respeitável, uma pessoa a quem reputo muita credibilidade. Se ele está dizendo que não é fishing expedition, está dizendo que havia alguma coisa concreta que se deveria descobrir mediante busca e apreensão. Se essa premissa for verdadeira, então não haveria abuso na busca e apreensão.

Quando foram levantar quem era essa família, foram rápido. Eles pousaram no Brasil e já foram levados para a PF. Talvez possam ter feito um cruzamento com as investigações do 8 de Janeiro, aí tudo que conversamos pode mudar. Se o tempo mostrar que há relação com o 8 de Janeiro, a conclusão muda, porque os atos de 8 de janeiro são ataques institucionais contra o Supremo e a ordem democrática e poderia haver algo de concreto a se buscar.

Mas o que temos de informação pública até o momento é uma lamentável interpelação violenta em Roma. Se os fatos forem apenas esses, acho tudo errado na reação. E existe o problema de competência [sobre o juízo responsável pelo caso] e ele é incontornável.

A que países autoritários você se refere?

Imagino uma situação parecida à da Turquia e da Hungria, regimes em que você tem formalmente democracias, mas que são fracas. Vivemos isso no governo Bolsonaro – não podemos esquecer que o hoje ministro do STF André Mendonça usou a Lei de Segurança Nacional [depois revogada em 2021] e mandou instalar [quando era ministro da Justiça] um inquérito contra um sujeito que colocou um outdoor dizendo que Bolsonaro não valia um pequi roído.

[O influencer digital] Felipe Neto sofreu um inquérito com base na Lei de Segurança Nacional por criticar o Bolsonaro. E todos nós democratas, de dedo em riste, dizíamos que isso era um absurdo, que agentes públicos têm que suportar os confrontos, mesmo que deselegantes.

O Moraes passou por uma situação um pouco mais grave do que um outdoor dizendo que é pequi roído, não estou dizendo que não há crime, mas temos que encontrar um ponto de equilíbrio ao proteger a honra dos ministros do Supremo e a honra das pessoas em geral, não a ponto de transformar isso num crime contra o Estado. Porque aí temos um problema de déficit democrático.

A honra do ministro Moraes é um bem jurídico importante, como a honra de todos. Por ele ocupar posição pública, um pouco mais. Mas comparar a honra do ministro à integridade do Estado é um passo que os regimes autoritários dão, e é esse passo que a gente não pode dar.

Esse episódio remete a algo da antiga Lei de Segurança Nacional?

Escolhemos sepultar a Lei de Segurança Nacional e trocá-la pela Lei de defesa do Estado democrático de direito. A velha Lei de Segurança Nacional até tinha crimes específicos para atentados contra presidentes dos poderes, mas nem seria o caso do Alexandre de Moraes, pois a presidente atual do Supremo é a Rosa Weber.

Por meio do processo democrático e parlamentar, sepultamos essa figura dos chefes de poderes, por entender que as figuras no Código Penal eram suficientes. Toda a virulência dessa resposta [ao incidente em Roma] tem cheiro de Lei de Segurança Nacional, que decidimos rever por acreditar que ela trazia abusos.