Iconoclastas de repartição
6 de fevereiro de 2006A ofensa a uma crença religiosa é passível de pena de até três anos de reclusão na Alemanha. Isto é o que está previsto no páragrafo 166 do Código Penal alemão, introduzido em 1969.
Esta lei veio a renovar o "parágrafo da difamação divina" de 1871, sendo entretanto bem mais restritiva do que sua antecessora: "Somente declarações que possam vir a pôr em risco a paz social são passíveis de punição judicial".
Enquanto no mundo muçulmano queimam-se bandeiras e embaixadas pela publicação de caricaturas ofensivas ao seu Profeta, as queixas apresentadas pelas comunidades religiosas alemãs devido a charges e sátiras envolvendo Maria ou Jesus não levaram até agora a condenações.
Na Alemanha e na Europa em geral, a liberdade da arte e de expressão gozam de grande valor legal e, por enquanto, os juízes não hesitaram em optar a favor destas nos vereditos envolvendo questões de difamação religiosa.
"Cristo gay e masoquista, Maria deveria tê-lo abortado"
Os juízes do Tribunal Constitucional Federal alemão sempre sublinharam que a extrapolação polêmica pertence à própria essência da caricatura. Esta observação, entretanto, não os impediu de probir charges como a do antigo governador da Baviera Franz Josef Strauss, caricaturizado como porco copulador.
Os magistrados consideraram sua publicação como um desprezo à dignidade humana. Os tribunais também se ocuparam de questões tocantes à Igreja, que sempre foi, pelo menos na Alemanha, um prato feito para os chargistas.
Camisetas com a imagem do Cristo crucificado e com a frase "Masoquismo tem cura", outras com a expressão "Maria, se você tivesse abortado, não seria necessário o papa", ou até mesmo a peça teatral Corpus Christi, que em 1999 causou furor aos moradores de Heilbronn, no Estado de Baden-Württemberg, ao apresentar Jesus e seus apóstolos como gays.
Como também na charge da capa da revista satírica Titanic, onde um crucifixo era caricaturado como porta-papel higiênico com a pergunta "Jesus representa ainda algum papel?", a Justiça alemã deu ganho de causa aos chargistas, já que tais provocações não significariam uma "pertubarção da paz social".
Toda nudez será condenada
Já a reprodução das caricaturas de Maomé do jornal dinamarquês pela imprensa alemã também não deveria levar a uma condenação judicial. Na opinião de especialistas, a reprodução do "corpo de delito" valeria apenas como uma citação, sendo assim não problemática.
O Conselho de Imprensa Alemão também não teria nada contra a reprodução das caricaturas de Maomé. Embora em seu número 10, o Código de Imprensa proíba publicações que ofendam costumes e grupos religiosos, o Conselho de Imprensa rejeitou em 2001 os protestos de organizações turcas contra a publicação de uma imagem do Profeta em um jornal da imprensa marrom.
Deve-se salientar também que caricaturas de motivos cristãos também não foram censuradas pelo Conselho de Imprensa. Uma representação da Santa Ceia, que um leitor considerou "blasfêmica e pornográfica" não foi condenada pelo Conselho, já que a nudez das moças representadas na tela não era total.
Justiça para quem precisa
Enquanto políticos do Partido Verde alemão lutam pela abolição do parágrafo que eventualmente proíbe tais provocações, representantes do partidos da aliança CDU/CSU, por outro lado, lutam pela extinção da cláusula da paz social, prevista no parágrafo 166. Neste caso, as ofensas seriam, por si só, passíveis de condenação judicial.
Já no resto da Europa, a tolerância em relação a tais temas varia de país a país. O caricaturista austríaco Gerhard Haderer foi condenado à revelia, por um tribunal grego, a seis meses de prisão por seus quadrinhos "A vida de Jesus".
Apesar dos protestos da diocese de Viena e dos apelos de boicote à editora de Haderer, o livro tornou-se um sucesso de vendas e o autor foi finalmente absolvido em Atenas.
Arte, liberdade e religião
Em 1994, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos teve que decidir sobre o filme Liebeskonzil (Alemanha, 1982) que foi confiscado em 1984 por um tribunal estadual de Innsbruck, na Áustria. O tribunal estadual declarou que o filme retratava "Deus como senil, Jesus como cretino e Maria como prostituta".
O Tribunal Europeu ratificou a decisão dos austríacos, afirmando que a religião teria uma importância diferente nos diversos Estados europeus.
Entretanto, o historiador Richard van Dülmen concluiu que queixas e acusações sobre blasfêmia acontecem sempre quando reina insegurança em torno das questões da fé.
"Quem se deixa provocar por declarações difamantes a Deus, é porque não está seguro de suas posições", afirma Van Dülmen.