"Há um regime de impunidade no México", diz ativista Javier Sicilia
17 de outubro de 2014O filho do renomado poeta e escritor mexicano Javier Sicilia, Juan Francisco, foi assassinado aos 24 anos de idade, em 28 de março de 2011, junto com outros seis jovens, a mando do crime organizado. Desde então, Sicilia, nascido na Cidade do México em 1956, renunciou à poesia para encabeçar um movimento social que uniu as vítimas de crimes de todo o México.
O Movimento Nacional pela Paz com Justiça e Dignidade, que ele lidera, luta junto a outras organizações civis mexicanas pelo esclarecimento de numerosos crimes, num país cuja taxa de impunidade chega a 95%.
Em 26 de setembro último, uma série de ataques da polícia matou pelo menos seis alunos da Escola Normal de Ayotzinapa, no estado de Guerrero. Outros 43 estudantes continuam desaparecidos. A região, que conta com joias turísticas como Acapulco e Ixtapa Zihuatanejo, abriga também os municípios mais pobres do país, com níveis de miséria equivalentes a países africanos como o Mali ou Maláui, segundo relatórios da ONU.
A Deutsche Welle conversou com Sicilia pelo telefone. De sua casa em Cuernavaca, no estado de Morelos, o ativista nascido em 1956, na Cidade do México, falou sobre impunidade, violência e a relação do governo com o crime.
DW: O senhor se recusou a ir à Feira Internacional do Livro em Acapulco, em protesto pelos 43 estudantes de Ayotzinapa que ainda estão desaparecidos, alegando que o governo municipal da cidade vizinha Iguala e o crime organizado foram cúmplices no assassinato de vários alunos. Como é essa situação?
Javier Sicilia: Estamos diante de um crime estatal, temos que dizer assim, porque é evidente que o Estado está penetrado pelo crime organizado, e não sabemos onde a coisa começa nem termina. Acabaram de encontrar umas valas comuns. Mas não se sabe ainda se são os rapazes, esperamos que não sejam. Mas essas valas evidenciam algo terrível. é a ponta do iceberg de uma realidade que vem se arrastando há mais de seis anos, que tentaram esconder e que volta a se tornar visível com essa tragédia.
A situação é muito grave: não são apenas os 43 desaparecidos, os seis mortos e os 11 feridos na Escola normal de Ayotzinapa. Por debaixo disso, estão os 30 mil desaparecidos, os 160 mil mortos, e muitas valas comuns clandestinas e muitos assassinatos, dos quais o Estado tampouco quis saber. A situação é terrível e colocou em evidência que estamos diante de uma emergência nacional e uma tragédia humanitária.
Por que o governador de Guerrero, Ángel Aguirre, se mantém no poder nesse estado? Onde estão os responsáveis?
Os partidos, os governos locais e o governo federal fazem parte da mesma corrupção. O caso do governador de Guerrero é muito claro: não o tocam, não exige que dê conta, e isso acontece com muitos governadores e funcionários, como o caso de Ulises Ruiz, ex-governador de Oaxaca, onde se cometeram crimes terríveis, vinculados ao crime organizado.
Temos também os casos em Morelos, durante o mandato de Felipe Calderón, em que morreu meu filho, assassinado junto com outros jovens. O governo [do estado de Morelos] de Marco Antonio Adame e o anterior, de Sergio Estrada Cajigal [ambos do Partido Ação Nacional, PAN], são coniventes com o crime organizado. Nem acusados há. A matança na cidade de Tlataya, na qual estão envolvidos agentes do Exército que assassinaram brutalmente supostos pistoleiros, confirma a existência de vínculos profundos, onde a única coisa a ser negociada é o poder e o controle do dinheiro que flui para um lado e para o outro, sob uma lógica de guerra.
A indústria do crime passou a uma nova fase, a da tomada do poder, como se vê nosestados de Guerrero, Michoacán e Tamaulipas?
Essa é uma realidade que existe há muito. Crimes como o que matou meu filho resultaram em 40 mil mortos e 10 mil desaparecidos. Sem contar os desalojados: estamos falando de quase meio milhão de desalojados por causa dessa guerra. A ausência do Estado e o fato de que os representantes são coniventes com o crime organizado causou uma emergência nacional, com a qual se vive há muito tempo no país.
Qual é a influência da impunidade da guerra suja dos anos 70 no México, quando o governo do Partido Revolucionário Institucional (PRI) repreendeu grupos estudantis de esquerda e que alguns comparam com as guerras sujas do Chile e da Argentina?
Não podemos ver com os mesmos olhos o que acontece agora e a guerra suja em 1970. Havia uma ideologia. Como ocorre nos totalitarismos, houve uma terrível repressão contra as posições de esquerda, que eram percebidas como uma ameaça política e ideológica. Hoje é mais terrível. A era das ideologias acabou e estamos na era do dinheiro. Existe um vínculo profundo entre a repressão aos jovens e o crime organizado. É algo que não dá para entender porque é inédito. É uma nova forma de totalitarismo, de ditadura. O que impera agora é o negócio. A suposta luta contra as drogas retroalimenta os capitais legais. E aumenta a verdadeira criminalidade, o sequestro e o desaparecimento de pessoas.
O que podem fazer os europeus e a comunidade internacional para ajudar a sociedade civil mexicana no combate à impunidade?
Como sugerido por alguns deputados do Parlamento Europeu, o que os outros governos podem fazer é bloquear os acordos comerciais, que é a única coisa que dói aos governos do México. Para o que digamos nós, os cidadãos, a sociedade civil mexicana, o governo não dá atenção. Desde a chegada ao poder de Enrique Peña Neto, se investiu muito dinheiro na imagem, para mostrar que o país mudou. Mas não é assim. Estamos diante de um regime de impunidade e de criminalidade contra a cidadania. Necessitamos da ajuda da comunidade internacional para restabelecer a paz, a justiça e o Estado de direito. Sozinhos não vamos conseguir.
Já foram mortas mais de 100 mil pessoas desde 2007. O presidente Enrique Piñera Neto conseguirá pacificar o país, como prometeu no início da gestão?
Eles não entenderam a palavra "emergência". O país está em chamas, e isso obriga a chegar a um consenso com todos os partidos, órgãos governamentais e organizações do país, incluindo a Igreja. Se não se alcançarem esses consensos e não se estabelecer um caminho claro para acabar com a impunidade, começar a fazer justiça e castigar quem temos de castigar, será muito difícil corrigir a situação, e que o presidente controle algo.
A atual situação poderia levar a uma revolta social?
Eu ouvi os pais dos estudantes dizerem que não acreditam nas autoridades, e que se seus filhos não aparecerem com vida, eles vão começar a fazer justiça com as próprias mãos. O surgimento das autodefesas [milícias comunitárias criadas por cidadãos], que as autoridades vêm tentando apagar da mídia, e o fortalecimento das policias comunitárias já são sintomas de que estamos à beira de uma explosão social. A mensagem que enviam aos cidadãos é: "Defendam-se como puderem." Esse pode ser o divisor de águas que nos levará a um horror maior, pois há muito ressentimento.